O que é um templo, se não uma concessão de D´us às necessidades do homem? – Parashá Tetzavê

Não é irrelevante, mesmo em nosso tempo, quando carecemos do Beit Hamikdash, estudar as precisões “toratísticas” sobre a construção e a operação do santuário. O conceito judaico daquilo que deveria ser um santuário é irredutivelmente relacionado ao conceito hebreu de casa: um local que se oferece aquilo que se possui, e que se consagra o espaço como ele é. Apesar da distância histórica e, portanto, psicológica, que nos separa do Tabernáculo e todas as leis relativas a oferendas e sacrifícios, é possível – e até necessário – aprender sobre o Tabernáculo, o santuário construído pelos nossos antepassados no deserto, com todos seus inúmeros ensinamentos e valores que permanecem válidos de maneira intacta até os dias de hoje. Não menos do que um ponto central de oferendas rituais, o Mishkan foi a fundação da memória do Povo. Um centro espiritual cujo propósito e missão era manter viva a consciência do Povo de Israel, respeitando os compromissos e obrigações adquiridos aos pés do Monte Sinai.

O Tabernáculo é um santuário carregado pelo povo para todos os lados. Não é D’us que precisa dele, mas sim, os homens. São eles que o construíram como uma linha direta de comunicação entre o puramente espiritual com a existência cotidiana, o humano, a existência temporal. De alguma forma, o Tabernáculo é uma concessão de D’us à natureza do homem. É o que o Redentor fornece ao homem, que com todas suas fraquezas, necessita um elemento material para lembrar suas funções transcendentais.

O Tabernáculo inclui, por sua vez, quase todos os elementos que fazem de um espaço fechado, um lar. Uma mesa, uma caixa (ou armário), uma pia, um lustre… Tudo, com a exceção das camas ou de qualquer outro objeto no qual possa-se se apoiar. Estes seriam móveis “incomuns” na casa e no santuário de D’us. Tal similaridade tende a revelar que cada casa, e cada lar, deve e pode – na concepção judaica – ser equiparada a um santuário. O “Baal Habait ” (proprietário) deve tentar garantir que sua casa tenha o devido grau de pureza, espiritualidade, propensão à justiça, etc., que se encontrava no Tabernáculo, no templo de Jerusalém. Inversamente, esta comparação material entre o santuário e o lar demonstra que o homem pode e deve sentir-se no Tabernáculo, como se estivesse na sua própria casa.

A falta de camas, ou de itens similares, no Mishkan, demonstra que a visita de cada homem no Tabernáculo deve ser sempre algo novo. O dinamismo e a mudança são as únicas evidências aceitáveis frente às expectativas perfeccionistas de renovação espiritual permanente, que inspira a Torá. A cama, o lugar onde o homem dorme, representa o fixo e o imutável, enquanto que, o Tabernáculo, deve ser um lugar de permanente renovação espiritual para o homem judeu.

Hoje em dia, sem o Mishkan e o Mikdash, não possuímos nenhum lugar no qual a santidade possa ser atribuída ao nosso compromisso diário com o Criador. Ao invés disso, instituímos o “Beit HaKnesset” (lugar de congregação), um pequeno santuário em que expressamos as funções que uma vez aceitamos em prol de um destino mais importante. O Beit HaKnesset tem para nós – como um local de oração, estudo e reflexão – este mesmo significado. Um lugar onde, mesmo sem nenhuma oportunidade de descansar, o homem se sente em casa.

A Mudança de Nome Representa uma Mudança de Destino – Parashá Vayshlach

A vida do patriarca Yaakov é representada pelas constantes crises entre seus sonhos e suas realidades.

Quando saiu da terra de Canaã, sonhou com a escada que determinou as experiências que viveria até seu retorno, ao sonhar com o embate com o anjo divino.

Desde seu próprio nascimento, teve que sempre enfrentar todos os tipos de conflitos e dificuldades – tanto internas quanto em relação ao mundo que o rodeava. Briga com seu irmão já antes do nascimento, mais tarde lhe compra a primogenitura, participa da enganação no episódio das bençãos de seu pai, defende seu direito a primogenitura e se encontra obrigado a fugir para Charán.

Em Charán, trabalha quatorze anos na fazenda de Laván, e é enganado por este, que entrega a Yaakov, Leah como esposa no lugar daquela que pensava casar, Rachel. Finalmente, mais tarde, foge de seu sogro e, repleto de medo e apreensão, se reencontra com seu irmão Esav. Depois sua filha Dina é violentada, seus filhos começam a odiar o favorito, Yossef que eventualmente “desaparece” e então, viaja até o Egito por razão da fome em Canaã, morrendo nesta terra estranha.

A vida de Yaakov é uma vida digna de estudo, analisando a reação dos homens quando correm riscos de serem arrasados pelas dificuldades e contratempos.

Neste marco é fácil observar três padrões habituais de conduta. A primeira alternativa deriva do otimismo ingênuo e radical, característico de Leibniz: “as dificuldades não existem, somente a imaginação do homem é responsável em criar o mal e suas conseqüências.”

Em segunda instância está aqueles que reconhecem a realidade com sua complexa amálgama de elementos positivos e negativos, contudo levantam as mãos, sentindo-se impotentes, quando surge uma dificuldade no caminho. Qualquer uma destas duas possibilidades, no entanto, nascem de uma distorsão da realidade objetiva ou subjetiva, são perigosas para o homem e o deixam passivo e indefeso frente a realidade.

A terceira alternativa, a única na qual uma pessoa pode resolver eficazmente sua relação com a realidade, é enfrentar-la com todo o conhecimento e força. Esta é a opção que representa a vida de Yaakov, quem enfrenta constantemente os desafios que vão surgindo, sem nunca render-se em sinal de impotência.

O momento crucial na luta de Yaakov acontece durante o embate noturno com o anjo. Neste relato é ignorado o limite entre o sonho e a realidade, entre o sonhar dormindo e o sonhar acordado.

Nos deparamos com um evento que parece um sonho, contudo este sonho projeta luminosamente suas conseqüências na realidade. Ao mudar – no apse do sonho – seu nome de Yaakov para Israel, é alterado, também, seu próprio destino particular e, com este, o destino de toda sua descendência.

O Povo e o Estado de Israel (sendo o nome que adotou sua descendência, no lugar de Yaakov ou mesmo Yehudá), fiéis ao arquétipo herdado, têm demonstrado freqüentemente que sabem lutar, enfrentar e defender-se. Contudo, mesmo hoje em dia, algumas vezes, o Povo de Israel encontra-se sozinho na escuridão noturna, até que surge o amanhecer e, mancando como resultado da luta, se enche de novas forças para continuar com seu caminho.

O sentido transcendental que a lei fornece a nossas vidas – Parashá Mishpatim

“Estes são os estatutos que lhes proporás. Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas ao sétimo sairá livre, de graça.” (Shemot 21:1-2)

A essência legislativa da Torá está localizada nesta Parashá. Não porque contenha o maior número de mandamentos (com 53, não muito atrás dos 63 da Parashá “Emor” e dos 74 da Parashá “Ki Tetzê”), mas sim, pois, seu próprio nome define seu caráter fundamental. “Mishpatim” significa leis. Uma vez que a maioria das pessoas considera que o judaísmo um compêndio sistemático de leis, é racional afirmar que a seção da Torá dedicada a “mishpatim” nos fornecerá a definição e os significados básicos de nossa religião.

A partir da teofonia momentânea no Sinai – da qual lemos na semana passada – a Torá vêm, agora, ensinar-nos que o D’s da revelação é simultaneamente o D’s que comanda e que ordena. A unidade do judaísmo se apoia na legislação totalizadora – holística, como se diz atualmente – que engloba todos os aspectos da vida, tanto da pessoa, quanto da comunidade. E, desde que o judaísmo se preocupa, não menos, com os acontecimentos sociais tanto quanto os religiosos, o mais notável desta Parashá parece ser a convergência entre o “civil” e o “ritual” -o entrelaçamento dos direitos e estragos em uma propriedade com a santidade do Shabat e detalhes de Kashrut.

Mishpatim começa com mais de sessenta versículos dedicados a legislação civil para então dirigir-nos imediatamente a proibição de oprimir um estrangeiro. Nos proíbe inclusive a opressão da terra, ao instruir-nos repousar a terra a cada sete anos – assim como devemos fazer com nossos escravos, empregados e animais, que devem descansar – não menos que nós mesmos – a cada sete anos. Cada aspecto da criação merece seu espaço específico e, por conseqüência, o Shabat – descanso e celebração nacional – é enfatizado tanto em consideração a nação como um todo, tanto como para cada indivíduo. A Parashá conclui com o tema de Kashrut, inculcando a mensagem de compaixão pelo mundo animal quando proíbe “cozinhar o filho com o leite de sua mãe”.

Contudo, o judaísmo é muito mais que um sistema legal, ainda que a legislação judaica seja importante e global. Apesar de que a tradução grega da Bíblia de dois mil anos, conhecida como “Septuaginta” traduza o termo hebraico “Torá” como “nomos” (ou seja, “normas”), o verdadeiro significado literal de “Torá” é ensinamento, referência que conota uma amplitude muito maior de que somente as leis, isoladas. Além disso, a Torá está repleta de histórias, contos e poemas cujos alcance são muito superiores a qualquer material legal. O Talmud (Lei Oral) é uma brilhante antologia de perguntas e respostas, discursos ontológicos, contos biográficos e metáforas morais. Caso não fosse o judaísmo uma religião “de direito”, seus textos mais importantes deveriam ser apresentados em uma estrutura similar ao direito romano ou inglês.

A mensagem desta Parashá nos ensina que a lei certamente oferece um sentido transcendente a nossas vidas cotidianas e também exige de nós um compromisso religioso visando o monoteísmo ético.

O compromisso do homem com D’s – Parashá Trumá

Esta Parashá nos fornece ensinamentos sobre os fundamentos imprescindiveis para construir uma identidade coletiva. “Fala aos filhos de Israel, que me tragam uma oferta alçada; de todo o homem cujo coração se mover voluntariamente, dele tomareis a minha oferta alçada”, ordena D’s a Moshe. “E esta é a oferta alçada que recebereis deles: ouro, e prata, e cobre… E faça para mim um santuário…”

Basta um minímo de suspeita para se questionar: “Será que D’s, sobre qualquer perspectiva, necessita que o povo contribua para a construção do santuário?”.

Outra vez, assim como acontece normalmente quando buscamos respostas simplistas, esta pergunta evoca o sujeito da questão. Não é D’s que necessita colaborações e nem santuários, e sim, o povo, cada indivíduo do Povo de Israel são aqueles que necessitam, realmente, de elementos materiais que sinifiquem um compromisso real, ações que reforcem uma coesão que os identifique como grupo consistente.

A colaboração econômica de cada indivíduo tem sido, sempre e contínua, um meio eficaz para avaliar, e eventualmente consolidar, o nível de compromisso das pessoas com a identidade coletiva a qual pertencem. Este é o compromisso que deve ser reafirmado a cada momento “cada um de acordo com sua possibilidade”, para que tenha sentido pensar em uma comunicação grupal com o Criador, para que seja acreditável a alternativa de um diálogo entre um grupo humano unânime com seu Redentor. Não é suficiente o “Naasê VeNishmá” – “Faremos e Ouviremos”, pronunciado aos pés do Monte Sinai. É necessário que o esforço coletivo se torne perceptível através de patentizar particularmente o sacríficio de cada indivíduo da congregação.

Até o momento relatado na Parashá, o Povo de Israel é atua como sujeito receptor: foi libertado do jugo egípcio pelo deserto adentro através de milagres e de modo não menos milagroso, recebeu seu sustento. Este é o momento em que o receptor de favores deve corresponder a generosidade divina tornando-se o transmissor. O sujeito passivo de D’s deve tornar-se um ator da sua própria história e realizar para sua divindade um monumento que sintetize sua singularidade frente aos outros povos.

A construção do santuário não está restringida a um setor especial do Povo de Israel. Pela própria essência do significado, e respeitando as possibilidades de cada um, trata-se de uma missão na qual qualquer omissão individual pode invalidá-la. Ninguém pode ficar de fora. Trata-se de um esforço conjunto, comum a todos os beneficiários das graças de D’s y do qual o valor quantitativo é relativo as possibilidades coletivas e individuais.

Mesmo hoje, este esquema permanece íntegro. A entrega individual, sem excessões, segue sendo uma condição necessária para a consistência de toda a identidade coletiva. A colaboração econômica em um projeto conjunto é representada hoje pela soliedariedade com os necessitados de cada comunidade assim como com as necessidade do Estado de Israel que não deixa de ser uma aposta coletiva ao bem-estar de toda a comunidade.

Quando o “seguro” é confundido com o inerte – Parashá Ki Tissá

Antes de subir ao Monte Sinai, Moshe adverte o Povo de Israel que permanecerá no alto do monte por quarenta dias e quarenta noites. Tempo este no qual o Criador lhe entregaria a Torá que deveria ser ensinada ao povo.

“E Moshe se atraso….”, diz a Torá, e o Talmud interpreta que o atraso não doi mais de 6 horas. De acordo com o cálculo do povo, Moshe devia ter descido com o amanhecer e não apareceu até o meio-dia.

Foram suficiente seis horas fugazes para que se cosumar uma das maiores tragédias espirituais da história do Povo de Israel. Carente de segurança, um povo que mantinha sua identidade de escravo dependente teve que materializar uma divinidade sem vontade própria, que se encontrasse abaixo do arbítrio de seus próprios criadores simulando orientar e governar. Frente a ausência de Moshe, carentes de seu carisma, a angústia não admite opções intermediárias. O povo, então, se dirige a Aharon e exige a construção de um bezerro de ouro que ocupe a posição de divindade de aí em diante.

A ansiedade resulta, normalmente, em atitudes radicais.

Frente a um atraso de seis horas, em meio a desesperação, ninguém pensou em uma solução transitória, tão próxima a eles. O próprio Aharon, irmão de Moshe, e sacerdote escolhido pelo Criador, tinha por sua vez preparação suficiente para assumir interinamente a liderança do povo até a volta de Moshe. Mas ninguém pediu tal coisa. Ao contrário, lhe exigiram que assuma a responsabilidade de construir o ídolo que suplementaria não somente a Moshe, mas também ao próprio D’s.

Acontece que, na desesperação, tanto antigamente quanto agora, tendem a não ver as soluções mais próximas. O povo inteiro deixa de olhar a sua volta e, olhando para horizontes afastados de outros povos inimigos tomam a decisão de imitá-los.

E é o que os deuses deles, dos outros, estão sempre aí, não nos abandonam, não se movem, não têm vontade. De maneira definitiva: não representam nenhum risco.

É necessário aprender algum ensinamento desta atitude, tão frequente, mesmo em nossos dias. Em busca de espiritualidade, muitos integrantes do nosso povo abandonam implicítamente a tradição que herdaram, mesmo quando nunca a hajam praticado sozinhos. Não lhe concedem, nem mesmo, o benefício da dúvida e se deixam seduzir por dezenas de outras doutrinas estranhas e afastadas, das quais a principal característica é o “exotismo”, a “distância” que representam  e a efetividade que possuem no contexto de suas próprias culturas.

Efetividade não maior do que, no decorrer de milhares de anos, tiveram o “corpus” normativo da Torá e toda nossa tradição para manter unido todo o Povo de Israel em suas relações particulares com outros povos e com o Criador. E segue germinando, adaptando-se ao contexto das novas formas de vida e projetando ao futuro a herança que desde tempos longíquos nos identifica.

As duas faces da vida humana – Parashá Vayakhel Pekudei

Esta Parashá começa com um resumo das regras inerentes da construção do Mishkán, o santuário hebreu no deserto. E, surpreende o fato de que a primeira mitzvá mencionada seja, nada menos que, a de cuidar o Shabat, a proibição do trabalho em um dia semanal de contenção.

Mishkán tinha a finalidade de constituir um centro espiritual, deveria ser o espaço sagrado que acompanharia a Israel, seja onde o povo estivesse. O Shabat, por sua vez, é o lapso de tempo destinado semanalmente ao sagrado. A Torá institui varias excessões às proibições sabáticas: o Shabat pode ser profanado, de qualquer maneira, para salvar uma vida humana. Do mesmo modo, suas regras são postergadas, perante a santidade superior de Yom Kipur. Podia ser lógico acreditar que para acelerar a construção do santuário estaria permitida também a profanação do Shabat. Ainda mais considerando que o Shabat e o Mishkan compartilham uma missão idêntica: elevar o homem em direção a D’s. De fato, o Mishkán receberia, a cada Shabat, sacrifícios e oferendas para D’s.

A Torá ensina que o Mishkán não deve ser construído no Shabat, ou seja, que uma Mitzvá não anula a outra. Que uma missão sagrada não justifica meios profanos. Definitivamente, a Parashá nos ensina que o fim, por si só, não justifica os meios e que o bom pode se tornar mal quando os meios nos quais foi alcançado não são justos, honestos e coerentes com todo o corpo moral e normativo que a vida deve se sujeitar.

Para financiar o Mishkán, o santuário que acompanhou ao povo de Israel na sua expeição pelo deserto, foram utilizados dois meios diferentes e complementários de arrecadação. Por um lado, foi pedido a todos “terumót” – doações, de acordo com a vontade, possibilidade, motivação pessoal e circunstâncias específicas de cada um. Em segunda instância, foi exigido, uma única vez, “machatzit hashekel” – uma meia moeda, na qual cada pessoa teve que contribuir, de maneira obrigatória, para a edificação do santuário. Explicam nossos sábios que, somente as doações, excederam a quantidade de recursos necessários para a construção do Mishkán. Deste modo, cabe esclarecer que o pedido da meia moeda não se referia às necessidades “da obra”. Antes de mais nada, este gesto se relacionava com a necesssidade de cada individuo de contribuir efetivamente ao Mishkan de maneira equitativa.

A necessidade de arrecadar através destas duas maneiras diferentes é amplamente explicada no Talmud, quando expressa que a vida do homem é equiparada a uma moeda, de maneira que possui duas caras que podem ser bastante diferentes entre si ainda que reciprocamente imprescindíveis. Necessitam uma a outra para poder existir.

As caras, ou faces, da vida de uma pessoa podem ser representadas ao observar por um lado o inato, o que recebeu como herança de sua família, a educação, o ambiente no qual nasceu e foi criado, e etc… E, por outro lado, quanto conseguiu – para bem ou mal – tomar decisões em sua vida, escolher seus próprios caminhos ao exercer de maneira responsável sua liberdade. A “meia moeda” é um símbolo de pertencer, é aquela que, inevitavelmente, é quem é. Por outro lado, a doação voluntária é a outra face. O exercício de liberdade aplicada a decidir, de acordo com os critérios e possbilidades próprias, é o dilema daqueles que batalham pela vida permanente.

A Torá ensina que ambas as facetas da vida devem estar em harmonia, tanto a nível individual como coletivo – pois mesmo a vida de uma comunidade apresenta as mesmas facetas da vida individual. É o equilibrio entre ambas que permite e fomenta o crescimento da comunidade.

A luta de Yaacov com o anjo: O encontro histórico – Parashat Vayishlach

«E ficou Yaacov só, e lutou um homem com ele até ao amanhecer. E disse a Yaacov: “deixa-me, pois chegou o amanhecer.” Mas Yaacov respondeu-lhe: “Não te deixarei ir, a não ser que me abençoes.” Então perguntou-lhe: “Como te chamas?” E respondeu: “Yaacov.” E disse o anjo: “O teu nome não será mais Yaacov, mas sim Israel, porque lutaste com De’s e com homens e prevaleceste.” E pediu-lhe Yaacov: “Diz-me, por favor o Teu Nome.” E o anjo respondeu: “Porque perguntas o Meu Nome?” E ali o abençoou.»

(Genesis, 32, 25-30)

Nesta parashá encontramo-nos com um dos relatos mais difíceis mas ao mesmo tempo mais interessantes da Torá: A luta entre o nosso patriarca Yaacov e um anjo.

A Torá não define claramente quem era a personagem com quem Yaacov lutou, mas com a continuação do texto, percebe-se que a sua luta foi com a presença Divina.

O combate de Yaacov com o anjo não está anunciado como sonho. No entanto, em torno deste relato está presente a aura misteriosa dos sonhos. Maimónides e Nachmanides interpretam este episódio da vida de Yaacov e diferem sobre se o que aconteceu foi sonho ou realidade.

O combate teve lugar à noite. O confronto começa só depois de Yaacov ficar só, solitário. A leitura dos acontecimentos provoca surpresa e foram feitas inúmeras sugestões interpretativas a fim de resolver os pontos aparentemente mais obscuros do texto.

É possível interpretar que se trata de um relato cujos componentes simbólicos se misturam, tal como no ruido de uma luta; a luta é a circunstância na qual Yaacov está imerso, mesmo quando ele próprio não é o protótipo de um guerreiro. No entanto, a sua vida já conhece o confronto, a astúcia, o medo e o triunfo. Esav e Labão constituem os sinais centrais do périplo de um homem que se sente predestinado e que recebeu revelações que o comprovam. Quando Yaacov ficou só, começou a luta.

A luta, no seu fervor e na sua confusão, provoca uma transformação na personalidade de Yaacov. O seu novo nome, «Israel», indica que conquistou uma nova posição. Renomear é, neste caso, um renascimento simbólico.

A luta de Yaacov não foi suscitada por um objetivo; tem carácter de prova. É uma luta que inclui no seu próprio acontecer a fonte da missão que constitui o sentido da existência de Yaacov. O temor e a ambição poderiam ser vistos como traços dominantes na vida deste patriarca, mas na luta, a ambição passa a prova de fogo e é premiada com «O teu nome não será mais Yaacov, mas sim Israel, porque lutaste com De’s e com homens e prevaleceste.»

Quando Yaacov pergunta pelo nome do seu adversário, este responde-lhe: «Porque perguntas o meu nome?». Nesta pergunta condensam-se o mistério e o fascínio do relato. O ser responde «Porque perguntas o meu nome?». A pergunta de Yaacov era certamente retórica. Ele sabia com quem tinha combatido. É de notar que esta certeza não formulada durante o sono, explode como evidência ao acordar. «E chamou Yaacov o nome daquele lugar Peniel» (Face de De’s) porque disse «Vi De’s cara a cara e livrou-se a minha alma.»

A luta de Yaacov não é vista como uma ação pessoal; representa a luta do povo de Israel ao longo de todas as gerações.

A vida de Yaacov é o protótipo do destino do povo judeu na diáspora. Ele é o patriarca mais perseguido, o escravizado, o que deve fugir, aquele cuja vida é acompanhada de sofrimentos.

Yaacov representa, na sua personagem e na sua história, todo o povo de Israel, e é por esse motivo que De’s lhe dá um novo nome, que será o nome do povo de Israel no futuro.

Milhares de anos decorreram desde esse confronto histórico até aos nossos dias, mas até hoje Yaacov encontra-se só e solitário. Até hoje, o povo de Israel tem que enfrentar, em combates noturnos, aqueles que querem apagá-lo do cenário histórico, afetando a sua integridade física e a sua identidade.

Os relatos da Bíblia não são só História. Neles encontramos mensagens que iluminam o nosso futuro e dão significado ao presente. O relato de Yaacov reveste-se de especial importância e significado por ser um relato «eterno».

Yaacov foi o vencedor do encontro noturno. Ele dominou a força do seu opositor misterioso até ao amanhecer. O seu triunfo era inesperado, já que se encontrava só, débil e desarmado frente a um adversário treinado e poderoso. Yaacov não se rendeu perante o adversário que o atacou na sombra da noite. Ele agiu de forma absurda, contra qualquer pensamento racional e pragmático. Por outras palavras: Agiu de forma heroica. Yaacov, só e indefeso, foi à luta contra um inimigo poderoso. Não demonstrou força, mas sim heroísmo e coragem. O amanhecer deparou-se com ele transformado em vencedor solitário, em herói inesperado. O absurdo e evitável superou o possível e racional. Triunfou o heroísmo em vez da racionalidade.

E não é que neste acontecimento está contida toda a história do povo judeu na sua luta pela sobrevivência durante milhares de anos?

O sentido da vida e da morte – Parasha Emor

E disse o Eterno a Moisés: “Diz aos sacerdotes, os filhos de Aarão, que nenhum deles se impurifique com os mortos entre o seu povo, salvo pela família direta: sua mãe, seu pai, seu filho, sua filha, seu irmão e sua irmã… Por ela poder-se-á contaminar… Santos serão para o seu De’s e não profanarão o Seu Nome, pois são eles que oferecem os sacrifícios ao Eterno” (Levítico 21, 1-7)

Um homem vivo, seja ele o homem mais simples, o mais vulgar, o mais malvado ou até um delinquente, não transmite impureza ritual (tumá)

Ao contrário, um homem morto, mesmo que tenha sido o homem mais justo, ou o mais santo, ou o mais puro, dado que a sua alma lhe foi tomada, transmite impureza ritual.

Deste modo, através das leis que dizem respeito à pureza ritual, a Torá dá-nos mais uma amostra do valor da vida. No momento em que a vida se interrompe, o dano é enorme e a ferida é irreparável: o homem transforma-se num corpo que contamina.

É proibido aos cohanim contaminarem-se através do contato com um cadáver. O cohen simboliza o culto divino na Casa de De’s. Por tanto, a vida é o seu símbolo e sinal. O cohen deve afastar-se do símbolo oposto, da anti-vida: a morte.

A Torá adverte os cohanim para não se aproximarem do morto. Não só é proibido tocá-lo, mas também ficar perto dele. Na realidade, todo o tipo de contato com o morto provoca a impureza ritual do cohen, e esta lei ainda está em vigor nos nossos dias. Um judeu que é cohen não pode ir ao cemitério ou entrar numa casa onde haja um morto.

No entanto, há ocasiões em que os cohanim se veem obrigados a contaminarem-se aproximando-se de um morto, pois o cohen deve estar presente no enterro dos seus sete familiares mais diretos: sua mulher, seu pai, sua mãe, seu filho, sua filha, seu irmão e sua irmã. Também é obrigado a tratar do enterro de uma pessoa pobre ou abandonada que não tenha quem se ocupe dela (é o morto de mitzvá.) Tratar do enterro de um morto é considerado uma das obrigações superiores do homem. Por isso, o cohen não pode utilizar a sua condição de cohen para evitar a esta responsabilidade no que diz respeito aos familiares diretos ou à pessoa que não tem quem trate do seu enterro.

As proibições impostas ao cohen no que diz respeito ao contato com o morto ensinam-nos tanto sobre a natureza da morte como sobre a importância da vida.

Como podemos explicar a impureza que se produz pelo contato entre um homem vivo e um homem morto?

A morte é o fim natural inevitável, que nos espera pacientemente no fim do caminho. No entanto, o Homem não vive, geralmente, com a consciência permanente da morte nem com a sua sombra. O Homem é um ser dinâmico que vive e acredita em si mesmo, na sua própria força e na sua própria vida. Mas o encontro com a morte concreta pode fazer estremecer esta atitude do Homem. O peso da realidade da morte pode ser mais forte que o da consciência sobre a sua existência.

A visão surpreendente do homem que até há poucos instantes estava com vida, respirava e sentia, e que repentinamente deixa de respirar, pode sacudir o Homem e fazê-lo tremer com os pensamentos de que “o Homem não vale nada”, de que “Não vale a pena esforçarmo-nos”, ou de “Para quê lutar?”. Este encontro com a morte provoca um sentimento de pessimismo que pode conduzir a pensamentos individuais e sociais prejudiciais, e assim se produz a “contaminação”.

O sistema de pureza ritual é um meio de defesa do espírito do Homem sobre a morte. Como todo contato com a morte contamina, o ritual permite o regresso ao equilíbrio e ao pensamento adequado para o Homem se libertar da “filosofia de cemitério”, podendo voltar a ter fé no valor da sua alma e da sua vida.

O judaísmo não se relaciona com a morte como um problema de saúde ou limpeza. No mundo antigo, o velório e o enterro dos mortos prolongava-se durante muitos dias. Ainda hoje há quem costume honrar o morto não efetuando o enterro imediatamente, fazendo-o permanecer entre os vivos enquanto for possível.

Para o judaísmo, no entanto, quanto menor for o tempo transcorrido entre a morte e o enterro, melhor. O judaísmo considera que a vida e a morte são fenómenos reais, mas tenta levar o Homem ao equilíbrio adequado entre os dois elementos, pelo qual é necessário estabelecer a diferença entre mortos e vivos com a maior celeridade possível.

É possível assinalar outra profunda diferença entre a vida e a morte. No momento da morte, o Homem vê a vida como uma série de momentos passageiros, e a morte como o fenómeno permanente. O judaísmo ensina-nos o contrário: a vida é permanente e firme, enquanto a morte é algo passageiro e temporal.

Enquanto vive, o Homem deve enfrentar a relação entre o temporal e o permanente. A morte faz o Homem enfrentar o conflito entre a temporalidade e a permanência. O segredo da existência encontra-se nesta relação. A vida do Homem caracteriza-se pela busca de algo duradouro, algo que permaneça ao longo de todas as mudanças e transições. Nisso consiste a busca do sentido da existência humana: o Homem procura a existência metafísica para além da mera existência física.

Do ponto de vista físico, o Homem depende das leis do espaço e do tempo. A nível metafísico, pode superá-las. Isto explica a necessidade de cultura, de fé, de algo que dê ao Homem um sentido de permanência no mundo.

A morte é um fenómeno físico que acontece na dimensão do espaço. O sentido é um facto metafísico que existe na dimensão do tempo. De forma paradoxal, o Homem pode “vencer” a morte na dimensão do espaço, enquanto existir no mundo do sentido, na dimensão do tempo, e a morte for considerada como algo temporal e secundário em relação à continuidade e permanência da vida espiritual no mundo do sentido.

O judaísmo santifica a vida e vê nela uma característica verdadeiramente humana. O Homem santifica a sua vida através da constante busca de sentido para a sua existência.

Parasha Behar Bechucotai

E disse o Eterno a Moisés no monte Sinai: “Diz aos filhos de Israel: Quando chegardes à terra que vos dei, a terra descansará pelo Eterno. Seis anos a semeareis e seis anos podareis vossas vinhas e recolhereis vosso fruto, mas o sétimo ano será de sábado, descanso rigoroso para a terra e para o Eterno.

Nem semeareis vossos campos nem podareis vossas vinhas… Será ano de descanso para a terra… e contarás sete sábados de anos, ou seja, sete vezes sete anos, quarenta e nove anos no total… E santificareis o quinquagésimo ano e proclamareis em toda a terra a liberdade de todos os seus habitantes. Será ano de jubileu para vós e devolvereis a cada homem o que lhe pertence… E esse ano do jubileu devolvereis a cada um a sua possessão…” (Levítico 25, 1-25)

A Torá não consiste só num sistema de ideais que funcionam num mundo de conceitos abstratos. Pelo contrário, os ideais da Torá devem ser levados a cabo no campo da vida, da terra, da nação. O objetivo das leis da Torá é construir uma sociedade humana perfeita na terra que foi escolhida para esse propósito. A nossa parashá ensina-nos acerca das mitzvot hatluiot ba’aretz — preceitos que dependem da terra, quer dizer, as mitzvot cujo significado depende do facto de habitarmos na terra de Israel, constituindo uma sociedade orgânica com um sistema de leis relacionadas com a agricultura, a sociedade e a justiça.

As leis da Shmitá – o ano durante o qual a terra deve descansar e os seus frutos pertencem a todos – têm um valor religioso muito importante, para além dos valores sociais e humanos que representam, como a ajuda aos pobres ou o estímulo das qualidades humanas da caridade e da generosidade.

O Yovel, o cinquentenário, o ano do Jubileu, tem como objetivo restituir a igualdade económica do povo hebreu na sua terra. A terra foi originalmente dividida em partes iguais entre todos os filhos de Israel, de modo que ninguém tivesse que depender da ajuda dos outros. No entanto, à medida que o tempo foi passando, certas pessoas viram-se obrigadas a vender as suas terras devido a necessidades financeiras, e isto causou a o desaparecimento do estado de igualdade económica. Durante o Yovel, a Torá encarrega-se de restituir as terras aos seus possuidores originais, voltando-se deste modo a uma situação na qual existe igualdade entre os povoadores da terra. A cada cinquenta anos produz-se a restituição das terras aos seus proprietários originais e também, durante esse ano, os escravos recuperaram a sua liberdade.

Segundo esta mitzvá, não se pode produzir uma situação de acumulação de terras em mãos de um indivíduo durante um período de tempo muito prolongado. E também não existe ninguém que fique despojado das suas terras para sempre. De modo que, se um indivíduo se vir obrigado a desfazer-se das suas propriedades devido a problemas económicos, esta venda não é definitiva, sendo apenas efetiva até ao próximo Yovel, quando as terras terão que voltar aos seus possuidores originais.

No entanto, esta igualdade económica apenas acontece uma vez a cada cinquenta anos. Entre Yovel e Yovel existe a possibilidade de se formarem duas classes sociais no seio do povo: a classe dos ricos, possuidores de abundantes terras, e a classe dos pobres, que foram despojados das terras dos seus antecessores. Esta situação poderia provocar também um cisma afetivo no povo, com o consequente sentimento de superioridade no seio da classe rica e a sensação de inferioridade e humilhação no seio da classe pobre. A Shmitá vem então manter a igualdade psicológica do povo hebreu.

Durante o ano de Shmitá, uma vez a cada sete anos, não existe posse da terra. A terra volta ao seu Criador. Durante todo o ano as terras ficam sem dono. Deste modo, os ricos sentem que as suas posses não são eternas, e o pobre compreende que a sua pobreza terá fim.

Sete vezes durante os cinquenta anos até ao Yovel, a cada sétimo ano, as dívidas monetárias caducam e não se trabalha a terra durante um ano. Tudo o que a terra produzir durante esse ano é dividido de forma igual entre todos os cidadãos das diferentes classes sociais. Durante os cinquenta anos até ao Yovel, cada cidadão tem sete anos de licença com vencimento, de forma semelhante ao ano sabático que conhecemos na sociedade atual.

Durante o ano de Shmitá, o dono da terra não a pode cultivar porque esta é propriedade pública e os escravos são libertados. No Yovel, todas as terras voltam aos seus proprietários originais e os empréstimos contraídos até esse momento caducam.

Uma das características do agricultor é a sua necessidade prática e afetiva de se relacionar com a terra. O agricultor, mais do que outros trabalhadores, está muito ligado à fonte do seu sustento, a terra. No entanto, a cada sete anos, a Torá ordena-lhe separar-se da sua fonte de rendimento para se poder concentrar em si mesmo.

O princípio subjacente aos preceitos da Shmitá e do Yovel – a interrupção dos trabalhos agrícolas na Shmitá e a devolução das terras aos seus possuidores originais no Yovel – é a posse divina da terra e do Universo.

Nos versículos da nossa parashá – y também noutros textos bíblicos – declara-se o reinado absoluto do Criador. Ele é abençoado pela criação do mundo, pelo seu sustento e renovação. De’s entregou este mundo ao Homem “sob garantia”: o Homem é o encarregado deste mundo de forma temporária. Noutras palavras, a posse do Homem sobre as suas terras não é absoluta: o mundo inteiro pertence a De’s. Todas as riquezas e posses do Homem foram-lhe entregues por De’s de forma temporária e só para cumprir certos propósitos.

No mundo moderno existem dois sistemas económicos: o capitalismo e o comunismo. O primeiro sistema propõe alicerçar a sociedade sobre o direito do indivíduo a aumentar o seu capital privado, num contexto de competitividade livre e prémio à iniciativa privada. Este sistema produz indivíduos que enriquecem sobremaneira na base da acumulação de posses materiais. O segundo sistema considera que o caminho para conseguir a felicidade humana consiste na concentração de todas as riquezas e terras em mãos de um só organismo: o Estado, que é o encarregado de avaliar as necessidades dos cidadãos e proporcionar-lhes os elementos necessários para o seu sustento.

Ambos os sistemas são nobres em teoria, mas fracassaram na prática, já que, por razões económicas e políticas, não foram capazes de conseguir a igualdade dos cidadãos.

Na nossa parashá encontramos uma resposta interessante e revolucionária à questão central da sociedade humana: como quebrar o círculo vicioso da exploração e reparar o dano através da justiça.

O princípio do sistema igualitário cíclico, expressado nos preceitos da Shmitá e do Yovel, é o seguinte: todos merecem a oportunidade igualitária e constante de triunfar na luta pela subsistência, oportunidade que é dada a todos através da igualdade cíclica.

A base desta igualdade consiste numa distribuição de base igualitária. Todas as terras e meios de produção foram originalmente distribuídos de forma igualitária, sem preferências. Cada família do povo de Israel recebeu uma parcela da terra de Canaan quando entraram nela, de forma proporcional ao número de almas de cada tribo e família. O ponto de partida foi igual para todos.

No entanto, é natural que durante o ciclo de cinquenta anos, num sistema de economia liberal, se criem diferenças económicas e existam indivíduos que enriqueçam, enquanto outros descendem na escada social. No entanto, através do sistema igualitário cíclico, estas diferenças não permanecem para sempre; pelo contrário: num determinado momento produz-se a nivelação de todos os indivíduos e o desaparecimento das classes sociais. A cada cinquenta anos, as terras, quer dizer, os meios de produção, voltam aos seus donos originais, e todos empreendem outro ciclo de cinquenta anos de economia livre em condições de igualdade. Desta forma renova-se a igualdade uma vez a cada cinquenta anos, de forma cíclica.

Se olharmos para as leis de Shmitá e do Yovel a partir de uma perspetiva moderna, é possível defini-las como uma reforma agrária de caráter revolucionário. De maneira total e automática, e sem pagamento algum, as terras são tomadas dos seus possuidores atuais para serem devolvidas aos seus possuidores originais. Na realidade, quando um homem comprava um campo, sabia que não o comprava para sempre mas sim por um período de tempo equivalente aos anos que faltavam para o Yovel.

Uma das características da existência humana é a distância e a brecha que se forma entre os objetivos morais e as realidades da vida. Para fechar esta brecha, é necessário levar a cabo interrupções pré-determinadas que renovem os valores básicos da nossa vida, tanto no que diz respeito à sua dimensão moral como à religiosa. A Shmitá e o Yovel representam esta interrupção, que, como vimos, tem o objetivo da renovação da igualdade económica, psicológica e social.

O exército do povo – Parashat Bamidbar

«E disse o Eterno a Moisés no deserto do Sinai, no tabernáculo… “Fazei o censo de toda a congregação dos filhos de Israel, pelas suas famílias e suas casas paternas, tomando em consideração os homens de vinte anos para cima, ou seja, todos os que estão aptos para pegar em armas em Israel.» (Números, 1, 1-5)

O quarto livro da Torá, Bamidbar, o livro de Números, conta a história do povo de Israel nas suas deambulações pelo deserto, desde o segundo ano da saída do Egito, até o ano quarenta. O livro de Números é o livro da Torá mas variado no seu conteúdo. Nos três livros anteriores, é mais fácil encontrar o fio condutor: O livro de Génesis é o livro dos patriarcas e da sua história. O livro do Êxodo é o livro que narra o surgimento do povo. Levítico é o livro dos sacrifícios e da santificação. Mas o livro de Números está composto por diferentes temas, e não se centra num tema fundamental como os livros anteriores.

As dez parashot do livro de Números dividem-se em dois grupos: as primeiras cinco descrevem a cristalização do povo no deserto num só organismo, incluindo os confrontos e conflitos que acompanharam este processo. A segunda parte do livro descreve o caminho para a terra de Canaan; as dificuldades e obstáculos que o povo teve que enfrentar enquanto se dirigia à Terra Prometida.

A descrição que a nossa parashá nos apresenta é a de um acampamento arrumado e organizado de forma exemplar. Cada tribo encontrava-se estacionada numa zona fixa, em torno do seu símbolo. Cada grupo de tribos ficava à volta do símbolo do grupo. Esta ordem era mantida enquanto o povo se deslocava e também quando se detinha no deserto.

A parashá Bamidbar parece incluir, à primeira vista, apenas aspetos administrativos e demográficos, relacionados com o ordenamento do povo em tribos, acampamentos, famílias e bandeiras. No entanto, se lermos a parashá em profundidade, descobrimos que a mesma nos descreve uma etapa significativa, na qual o povo de escravos se transforma num povo de seres livres.

A leitura da nossa parashá ensina-nos como o povo de Israel, que pouco tempo antes tinha saído da escravidão para a liberdade, se organiza segundo a disposição divina. Esta ordem é militar no seu caráter e aparecem repetidamente certas palavras como “bandeira”, “acampamento”, “exército”, “soldados”, etc. Para organizar os indivíduos por acampamentos, Moisés, por ordem divina, faz um censo, pois era necessário saber o número exato de pessoas que podiam integrar o exército.

Naquele momento, dois anos depois da saída do povo hebreu do Egito e da entrega da Torá, era necessário organizar-se em acampamentos e formar um exército, já que, durante o seu caminho até à terra de Canaan, o povo hebraico devia atravessar grandes zonas desérticas onde habitavam tribos selvagens que constituíam um grave perigo para o povo. Também teriam que atravessar as fronteiras de povos que não estavam interessados em dar-lhes passagem. A marcha difícil pelo deserto exigia, também, precauções especiais que assegurassem que o povo pudesse levar a cabo o esforço necessário. Em primeiro lugar, era necessário que existisse uma disciplina rígida, de modo que cada pessoa não procedesse segundo os seus desejos. A conclusão evidente é a de que era necessário organizar o povo de forma exemplar e dar-lhe um exército preparado para a etapa que tinham que enfrentar.

A formação do exército representa uma etapa significativa no processo de construção da nação. Ao princípio deu-se a saída do Egito, a saída física da escravidão. Depois o Criador entregou a Torá e as mitzvot ao povo no monte Sinai, e deste modo insuflou uma alma no corpo liberto. Agora produz-se o momento da formação do exército, que irá introduzir no povo a ordem e a disciplina, e que também lhe dará a sensação de segurança em si mesmo. No princípio do seu caminho, o povo usufrui da ajuda milagrosa do Criador. Durante a saída do Egito, o Criador acompanha o povo com os Seus milagres. Durante a guerra com Amalek, o povo ainda não luta; o Criador ajuda-o com os Seus milagres. Só depois de o povo conhecer o seu destino, no monte Sinai, se ergue o exército que lhe permitirá conduzir a sua vida com maior autonomia.

Antes de entrar em Eretz Israel, os judeus devem aprender uma lição importante: o Homem não deve confiar nem depender só em milagres. Sem dúvida que De’s nos vai continuar a ajudar, mas o povo deve estar disposto a enfrentar todo o tipo de obstáculos que aparecerão no seu caminho.

Outro dos objetivos que se concretiza através da formação do exército é o da cristalização do povo. O povo constitui um exército e passa por uma transformação significativa: a partir de um acampamento de escravos, surge o exército de um povo organizado e unido.

A transformação do povo em exército cria o coletivo. O indivíduo, com os seus desejos particulares, as suas aspirações e as suas relações familiares, desaparece, para se transformar em parte da nação.

Quando uma pessoa se incorpora num exército, está disposta, de certo modo, a renunciar à sua individualidade para se entregar à causa pública, transformando-se em parte do coletivo. Quando Rambam (Maimónides) descreve as exigências ao guerreiro para se transformar em parte do coletivo afirma “E a partir do momento em que entre em relações de guerra, dedicar-se-á a defender o lugar e a segurança de Israel em momentos de necessidade, e saberá que faz a guerra em nome de De’s. Porá a sua alma nas Suas mãos e não temerá, e não tremerá, e não pensará na sua mulher nem nos seus filhos, mas apagará toda recordação do seu coração, para se transformar em parte do exército do povo”.

A pessoa que não se consegue desligar dos pensamentos acerca da sua própria pessoa não pode lutar como é devido.

A força mais poderosa que temos em relação a nós próprios é o instinto de sobrevivência. No entanto, exige-se do guerreiro que este esteja disposto a sacrificar a sua própria vida, os seus desejos pessoais, as suas posses e até as suas relações familiares, face ao objetivo de se transformar em parte do exercito do povo.

Geralmente, um exército popular baseia-se em dois elementos centrais: as unidades especiais, constituídas geralmente por voluntários, e o resto do povo. A inscrição dos filhos de Israel no deserto não é voluntária, mas consiste numa obrigação imposta pelo governo. O exército formado no início da vida do povo de Israel no deserto é um exército do povo. Não é um exército de mercenários, mas sim de todo o povo. A característica especial deste exército é que pela primeira vez se estabelece um exército do povo. Não se trata de um exército de escravos, nem de mercenários, nem de voluntários. É um exército do povo, de todo um povo. Todos os homens entre os vinte e os sessenta anos de idade deviam entrar nele. Todos deviam servir, de modo igualitário.