O nazir: a obtenção do equilíbrio psicológico – Parashat Nasó

«E disse o Eterno a Moisés: “Diz aos filhos de Israel: Quando alguém, seja homem ou mulher, fizer voto de consagração ao Eterno, abster-se-á de vinho e de bebidas fortes e não beberá vinagre de vinho, nem vinagre de bebidas fortes, nem licor de uvas algum. Nem sequer comerá uvas, sejam frescas ou secas.

Em todo o tempo do seu nazirato, não comerá nada feito da videira, desde as grainhas até às folhas. Em todo o tempo do seu nazirato não passará navalha pela sua cabeça. Enquanto transcorrer esse tempo de consagração ao Eterno, será santo e deixará crescer os cabelos ilimitadamente. Em todo esse tempo de consagração ao Eterno não se aproximará de cadáver algum. Nem sequer se impurificará por seu pai, por sua mãe, por seu irmão ou por sua irmã se morrerem, porque o diadema de De’s está sobre a sua cabeça. Todo o tempo do seu nazirato, será santo ao Eterno.”» (Números, 6, 1-10)

Entre os variados tópicos da parashat Nasó, o tópico do nazir (o nazareno consagrado) chama muito a atenção. Esta parashá destaca-se porque não só nos apresenta temas que lhe são próprios, mas também nos ensina certos elementos que são essenciais para o judaísmo.

Neste texto, encontramo-nos com o nazir, um homem que se afasta dos prazeres do mundo e se abstém totalmente da bebida. Existem três proibições para o nazir: beber vinho ou ingerir qualquer alimento derivado da videira, cortar a barba e o cabelo e receber impureza através do contacto com cadáveres.

O aspeto interessante e novo que a Torá nos apresenta através da imagem do nazir é que, apesar de nos ser imposto um conjunto de regras haláchicas bastante rígidas, existe também a consciência de que, no que diz respeito a certas esferas da vida, é impossível exigir uma conduta única, tanto no presente como nas gerações futuras. A Torá dá então autoridade ao Homem para escolher e impor a si mesmo uma certa forma de vida, que o aproxime aos preceitos e leis da Torá.

Esta atitude é relativamente moderna, já que contém elementos próprios de uma filosofia existencialista no que diz respeito ao Homem. No entanto, apesar de não estar familiarizada com esta corrente filosófica, é evidente que a Torá era possuidora da sabedoria necessária referente à alma humana e às suas necessidades existenciais.

A Torá refere-se à generalidade do povo, e também fornece os preceitos que têm o objetivo de levar cada um dos indivíduos do povo ao estado espiritual de santidade.

Por tanto, a Torá não exige o preceito de nezirut, já que nem toda a gente pode alcançar este estado espiritual. Mas por outro lado, para certos indivíduos cujas necessidades religiosas ou psicológicas exigem o estado de nezirut, é permitido escolher voluntariamente o cumprimento deste preceito.

Podemos considerar o nazir como um ser particular, diferente dos demais. A Torá permite também a existência de indivíduos especiais. Esta pessoa escolhe para si certos comportamentos singulares: deixa crescer o cabelo, evita certos alimentos etc. A Torá, no entanto, só permite levar a cabo comportamentos especiais se através deles o indivíduo chegar a um estágio social e religioso compatível com as normas básicas do judaísmo.

O indivíduo transforma-se em nazir por sua livre escolha. A Torá determina a moldura da nezirut, mas permite ao Homem determinar livremente o seu conteúdo. A nezirut pode constituir um meio psicológico que possibilite ao indivíduo dominar os seus instintos, como, por exemplo, no caso de uma pessoa que está dominada pela bebida e necessita libertar-se dela. A dependência da bebida é um pecado e, assim, a força necessária para alguém se libertar dela contém certo elemento de santidade. Na sociedade atual existem conjuntos de regras destinados a conseguir a desintoxicação das drogas e do álcool. Habitualmente este processo é levado a cabo através do afastamento da pessoa do seu meio habitual para evitar, deste modo, que esta entre em contacto com as substâncias nas quais está viciada e que lhe trazem consequências nocivas. De forma similar, através da nezirut, o indivíduo pode recuperar o equilíbrio psicológico.

O desejo do Criador não é que o Homem viva num estado de nezirut; pelo contrário, o Criador põe à disposição do Homem várias fontes de satisfação. A Torá considera que o Homem é ao mesmo tempo uma criatura natural e espiritual, e por isso necessita de certos prazeres. No entanto, De’s não está disposto a aceitar que o Homem seja regido apenas pelo hedonismo e pela sua necessidade de prazer pessoal.

Rabi Yehuda Halevi, na sua importante obra filosófica O Cuzarí, explica a relação do judeu com o mundo material que o rodeia: “O religioso ou servo de De’s não costuma, entre nós, afastar-se e separar-se do mundo como se este fosse uma carga, nem rejeita a vida, que é das principais ofertas do Criador. Com a vida, o Homem recorda as obrigações que Lhe deve pelos benefícios que recebe continuamente da Sua mão generosa… Ama o mundo e a vida repleta de dias, porque com eles conquista a vida eterna no outro mundo e estima que quanto mais bem fizer nesta vida, em maior grau subirá na outra.”

Em todas as religiões onde a ideia da redenção da alma humana constituir um dos seus elementos ecentrais, a nezirut ocupa um lugar importante e está relacionada com a santidade. Consideremos por um instante a atitude de outra filosofia religiosa, o budismo, no que diz respeito à nezirut, e descobriremos uma atitude que é a antítese total do judaísmo no que diz respeito ao mundo e à conduta humana.

De acordo com os princípios do budismo, cujo fundador viveu no século VI antes da era comum, a “pena” é o elemento central que rege este mundo. Todo o Bem do mundo é passageiro, e todos aqueles que estejam ligados a este Bem passageiro, acabarão em tristeza. A tristeza é eterna, e baseia-se na paixão. A paixão humana é que origina a tristeza, da qual é impossível libertar-se. Qual é então a solução? O suicídio não soluciona o problema, porque depois da sua morte o Homem terá que voltar à vida e sofrer novamente. Só se o Homem eliminar dentro de si todo o desejo, toda a paixão, se poderá redimir. A redenção consiste, então, na libertação de todo o desejo e paixão vital. O objetivo do Homem é superar as suas próprias paixões. Para conseguir a eliminação das paixões interiores, o budismo propõe a nezirut, que permitirá alcançar o estado de Nirvana. Segundo o budismo, o Homem redime-se a si mesmo. Não existe mundo superior ou força superior que o venha redimir. O objetivo que o budismo apresenta ao Homem é pessimista e negativo.

Existe uma diferença fundamental entre o conceito judaico da nezirut e o de outras religiões. A nezirut judaica inclui: o afastamento de certos elementos desnecessários, em especial aqueles que prejudicam o corpo, como o vinho, e um aspeto especial de santidade que se consegue através de certas características exteriores, como o fato de se evitar cortar a barba. O objetivo destas proibições é conseguir a concentração do pensamento do nazir em esferas espirituais, eliminando a preocupação pelo aspeto exterior e o cuidado da apresentação física e da beleza.

Contrariamente à nezirut de outras religiões, o judaísmo não exige a submissão da força instintiva e da natureza humana. O nazir judeu não é obrigado a deixar a sua vida familiar nem o seu casamento. Pelo contrário, é-lhe exigido que estabeleça uma família, tal como todos os outros homens do povo.

O judaísmo rejeita o ascetismo como forma de vida, e não acredita que este constitua o caminho para a santidade, ao contrário de outras religiões, desde o cristianismo até certas seitas orientais, que decretaram o afastamento do mundo e de todos os prazeres, para as pessoas se fecharem em mosteiros ou se refugiarem em locais elevados e afastados.

O Talmud diz: “O destino do Homem é prestar contas por tudo o que contemplou com os seus olhos e não comeu.” De’s criou o mundo e pô-lo à disposição do Homem para este o usar e desfrutar dele. A rejeição dos prazeres do mundo que Ele criou, é equivalente à rejeição de De’s, que nos oferece os prazeres. Por tanto, é nosso dever desfrutar do mundo, sempre dentro da moldura legal que a Torá nos impõe.

A Torá não considera que a natureza seja um elemento corrupto contra o qual é necessário lutar. Pelo contrário, o Homem deve viver dentro do contexto das suas tendências e necessidades saudáveis. O judaísmo diz “sim” à vida…

A Menorá: símbolo de dinamismo e otimismo – Parashat Behaalotcha

«E disse o Eterno a Moisés: “diz a Aarão: Quando acenderes as luzes do candelabro, fá-lo de modo a que alumiem para a frente” e Aarão assim o fez, orientando as sete luzes para a frente conforme a ordem dada a Moisés pelo Eterno. A feitura do candelabro era de ouro cinzelado martelo, tanto no seu tronco como nas suas flores, conforme o modelo que tinha mostrado o Eterno a Moiseés.» (Números, 8, 1-5)

A Menorá (candelabro) é um dos utensílios mais importantes do tabernáculo do deserto e do templo sagrado de Jerusalém. Estava construída de uma só peça de ouro puro e enfeitada com gravuras e flores que lhe davam um aspeto belo e imponente.

A Menorá do tabernáculo tinha sete braços. O braço central era a parte fundamental da Menorá e dele saíam três braços de cada lado. Cada braço estava decorado com cálices em forma de flores de amendoeira e, quando a Menorá estava acesa, as três velas dos lados eram dirigidas na direção da vela central. A vela central simbolizava o princípio fundamental, a luz central.

O óleo para a Menorá era de uma grande pureza e era destilado especialmente para servir este propósito.

É necessário assinalar que enquanto a Menorá do tabernáculo tinha sete braços, a Menorá de Chanucá à que nós estamos habituados nos nossos dias tem oito braços, em recordação do milagre de Chanucá, quando a Menorá se manteve acesa durante oito dias com um recipiente de óleo que era suficiente apenas para um só dia.

A Menorá era o único utensílio do tabernáculo do Templo construído totalmente em ouro. O ouro, o metal precioso, não reage perante as condições ambientais, o tempo e o clima; não se oxida nem se deteriora. O material do qual a Menorá está construída simboliza o princípio estável que não se modifica nem está sujeito a nenhuma influência.

Aarão, o Cohen, e depois os seus filhos, os Cohanim Hagdolim (Grandes Sacerdotes), acendiam todas as manhãs as velas a óleo da Menorá. No momento do acendimento arrumavam e limpavam as velas, preparavam as mechas e tiravam as mechas queimadas do dia anterior. A Menorá devia permanecer acesa durante todas as horas do dia e da noite, todos os dias do ano.

Na época do Segundo Templo, a Menorá era feita de estanho. Quando a situação económica melhorou, banhou-se em prata. Depois de algum tempo fez-se um banho do corpo central em ouro, de forma similar à Menorá do Primeiro Templo.

Durante a destruição do Templo, a Menorá foi saqueada juntamente com os outros objetos sagrados, desconhecendo-se o seu paradeiro. Com base na gravura do Arco do Triunfo em Roma, no qual aparece claramente a Menorá, há quem defenda que a Menorá foi levada para Roma. Outros, pelo contrário, defendem que os romanos não conseguiram levar a Menorá, já que esta foi escondida pelos judeus nas catacumbas por baixo do Templo, para evitar que os conquistadores a levassem.

Podemos considerar que a Menorá de sete braços do templo que aparece na nossa parashá e noutras parashot era um instrumento ritual que tinha o único objetivo de cumprir uma função religiosa; no entanto, podemos contemplá-la de forma alegórica, simbólica. No nosso caso, este parece ser o significado profundo da Menorá e dos demais utensílios do templo. A Menorá não era apenas um ornamento do templo. A Menorá e a sua luz tinham um valor simbólico que a Torá comunica ao povo. A função da Menorá é a de dar luz através das suas velas. Na Torá e no judaísmo, a luz simboliza a sabedoria e a inteligencia. O poder da vela é a sua influência sobre o Homem. A luz da vela penetra no Homem através dos olhos, mas exerce a sua influência também sobre a sua mente e sobre a sua alma.

A luz da vela, com a chama que sobe e desce, não é estática, mas sim dinâmica. Muda constantemente de cor e de forma; está em perpétuo movimento. Por isso o Homem se deleita na contemplação da chama, que lhe recorda o seu próprio movimento interior, o seu desejo de avançar e de mudar, de conseguir os seus objetivos, de ascender constantemente.

Há quem defenda que a Menorá representa o Homem. As velas viradas para o centro ensinam o homem a olhar para dentro, a rever as suas próprias ações. O judeu que contempla a Menorá de ouro aprende sobre o significado da vida saudável. A Menorá ensina que o segredo da felicidade humana depende da possibilidade de o Homem colocar o espírito e o corpo ao serviço de um objetivo superior e elevado, um objetivo não egoísta, que traga à sua alma a união e a paz.

No contexto de uma interpretação alegórica do Templo como representação simbólica de todo o universo, Fílon de Alexandria defende que a Menorá representa o céu, que, tal como ela, irradia luz. As sete velas representam os sete satélites que existem no céu, segundo a astronomia da antiguidade.

As velas da Menorá deram origem a variados costumes e leis, como as velas de shabat, a vela de recordação (yzcor) e a luz eterna (ner tamid).

As velas do shabat foram escolhidas como símbolo deste dia e servem para diferenciar entre os seis dias da semana e o Shabat. A luz assinala o limite do tempo entre o dia e a noite, e também entre os seis dias da semana e o Shabat. A luz marca uma divisão na passagem do tempo e no decorrer dos dias.

Os textos dos nossos sábios fazem especial referência às velas sabáticas mais além da função prática de iluminar a mesa ao redor da qual se vão sentar as pessoas em Shabat. Os sábios consideraram que as velas simbolizam os valores que transcendem a percepção sensorial e simbolizam o mundo dos conceitos metafísicos nas esferas do espírito e do pensamento.

A luz simboliza também a presença da luz divina no lar e no mundo, e, através do seu acendimento, simbolizamos a sua existência.

Assim como as velas sabáticas representam a entrada do Shabat e a santificação do dia, também acendemos a vela de Havdalá à saída do Sábado. Ela diferencia entre o santo e o profano, entre a luz e a escuridão, entre Israel e os outros povos (segundo a benção).

Depois do falecimento de uma pessoa, há quem costume acender duas velas e colocá-las junto à cabeça do morto. Há quem deixe uma vela acesa durante todo o primeiro ano de luto, e outros fazem-no apenas durante os sete dias que se seguem ao falecimento. Todos acendem uma vela no dia do aniversário da morte. A luz de recordação simboliza a relação que existe entre a pessoa que faleceu e os seus parentes. A luz recorda-nos que o morto não é esquecido e que a sua recordação permanece no nosso coração e nos acompanha.
Em recordação da Menorá que estava constantemente acesa no Templo, costuma deixar-se uma luz acesa permanentemente ao pé da arca no Beit Haknesset.

A Menorá, símbolo religioso mais importante na história do povo judeu, constitui hoje o símbolo nacional do povo que voltou para a sua terra. Uma das razões pelas quais a Menorá é o símbolo do Estado de Israel, foi criar uma antítese da Menorá que aparece no arco de Tito. No arco, a Menorá simboliza a derrota e a humilhação dos judeus perante outros povos. Pelo contrário, a Menorá como símbolo do Estado de Israel representa a libertação, a independência, o orgulho judeu.

Podemos aprender um pouco mais acerca do significado da Menorá e da luz da vela através de uma história chassídica que descreve a ação da vela: Um rabino pediu a um aluno que fosse à cave para lhe trazer um livro. O aluno desceu à cave, mas a escuridão que reinava impediu-o de cumprir com o pedido do seu mestre. Voltou então para junto do rabino e disse-lhe “Está tudo escuro e não consegui encontrar o livro“. O rabino respondeu-lhe: “Qual é o problema? Toma uma bengala e vai lá novamente. Bate na escuridão e então poderás afugentá-la e encontrarás o que procuras.“

Desceu novamente o aluno e fez o que o seu mestre lhe tinha mandado, mas desta vez também não conseguiu cumprir o seu objetivo.

Voltou para junto do seu mestre e disse: “Foi impossível afugentar a escuridão.“

Então disse-lhe o rabino: “Toma esta pequena vela, acende-a, e a pequena luz conseguirá afugentar a escuridão. Não é possível afugentar a escuridão, o mal, a negação, mas se acendermos uma pequena luz poderemos afugentar a escuridão e iluminar um grande salão.“

O povo de Israel compreende que a Menorá não constitui apenas um objeto de culto; ela é também um meio de recordação. O homem contempla e acende as suas velas para acender a menorá da sua vida e então esta dar-lhe-á a luz do seu sustento.

Parashá Shlach

Os espiões: Uma atitude pessimista em relação ao futuro do povo judeu
E disse o Eterno a Moisés: “Envia homens para explorarem a terra de Canaã que dei aos filhos de Israel. (…) De cada tribo mandarás um homem, o principal de cada tribo” (…) E enviou Moisés os seus emissários para explorarem a terra de Canaã (…) Foram, pois, reconhecer a terra, e voltaram dessa busca no fim de quarenta dias. E apresentaram-se perante Moisés, Aarão e toda a congregação dos filhos de Israel… e disseram a Moisés: “Fomos à terra onde nos enviaste e é verdade que emana leite e mel, mas o povo que mora ali é poderoso. As suas cidades são fortificadas e muito grandes…” E Caleb mandou calar o povo e disse “Havemos de subir para herdar a terra, porque podemos fazê-lo.” Mas quem o acompanhou retorquiu: “Não podemos subir contra esse povo, porque é mais forte que nós…” (Números, 18, 1-32)

A parashá Shlach dá-nos a conhecer um dos episódios mais dramáticos e decisivos que aconteceram aos nossos patriarcas no deserto, no seu caminho do Egito até à Terra Prometida. O trajeto entre o Monte Sinai e Eretz Israel devia ter demorado apenas uns dias. O povo tinha saído do Egito acompanhado pela nuvem divina, e, através de grandes milagres, encaminhava-se para Eretz Israel.
No entanto, pouco antes de entrarem na Terra, De’s ordena a Moisés:
Envia homens para explorarem a terra de Canaã que dei aos filhos de Israel… Porquê era necessário enviar espiões para percorrer o país antes de o povo entrar nele? Para quê era necessário ter essa informação estratégica? Não tinham saído do Egito confiando só no Criador e sem informação nenhuma baseada no trabalho de espiões?
Não há dúvida de que o Criador conhecia perfeitamente a situação de Eretz Israel e podia perfeitamente ter informado o povo acerca dela. Também Moisés, que tinha crescido na casa do faraó, devia ter informação acerca da terra de Canaã, tão próxima do Egito. Devemos supor, então, que o envio desta delegação tinha propósitos muito especiais. A Torá diz “Envia homens”. Não diz “espiões”, diz “homens”. A Torá não propõe a Moisés o envio de espiões “profissionais”, mas simplesmente de homens do povo. Dá-nos a sensação de que a Torá não deseja estudar as características da terra, mas sim analisar o comportamento dos homens. Conhecer os homens e os seus costumes, reveladores da situação espiritual e psicológica do povo.
Moisés envia doze homens. Um homem de cada tribo, com o objetivo de que todas as tribos se sentissem representadas de maneira adequada, e também para que o fracasso ou o sucesso da missão não recaísse somente sobre membros de uma determinada tribo. Eretz Israel pertence de modo igual a todas as tribos do povo. Por tanto, representantes de todo o povo deviam estudar a terra e emitir posteriormente o seu juízo de valores relativamente à mesma. Os enviados não eram pessoas comuns mas sim os chefes de cada tribo, a fim de que a sua opinião fosse aceite sem discussões por toda a tribo.
Dá-nos a entender que o objetivo desta delegação era fortalecer a relação com a terra de Eretz Israel, ainda antes de o povo entrar nela. O destino do povo judeu está ligado de forma indissolúvel com o desta terra. É possível comparar o contrato que existe entre o povo de Israel e Eretz Israel com um contrato de casamento. Cria-se uma relação profunda para enfrentar as alegrias e as desgraças, e a relação é eterna. Moisés ordenou aos homens percorrer a terra. Não se tratava de reunir informação, mas sim de dar aos chefes das tribos a oportunidade de percorrer o país e avaliar as suas características tão especiais. As instruções que Moisés deu a conhecer aos homens definiram o caráter da sua missão: fortalecer o país, fortalecer a ligação com ele, ainda antes da entrada de todo o povo. No entanto, os chefes das diferentes tribos não compreenderam a sua missão nem a levaram a cabo. Levaram-na a cabo de forma limitada, apenas no que diz respeito à sua missão de reconhecimento, sem assumir a sua condição de líderes das diferentes tribos do povo de Israel.
Moisés não se relacionava com a terra só no seu aspeto de entidade política ou física; ele considerava que entrar nela representava também um encontro carregado de significado. No entanto, os chefes estudaram a terra da mesma forma que uma pessoa avalia as perspetivas de um negócio que vai empreender. Analisaram as possibilidades de ganhos e eventuais perdas, e por fim concluíram que a empresa não tinha nenhuma possibilidade de êxito.
Se olharmos para as instruções que Moshé Rabeinu transmitiu aos espiões, vemos que lhes pediu informação sobre a situação demográfica e a agricultura. Não lhes pediu para analisar a situação militar. Na realidade, a expedição parece ter objetivos “turísticos” e não militares.
Os representantes das tribos são enviados a Eretz Israel numa missão que não tem conotações profissionais, e cujo objetivo é estimular o povo e conscientizá-lo da sua próxima redenção.
Logo após o seu regresso, os membros da delegação dividem-se em dois grupos: Dez homens relatam factos negativos e predizem que a conquista daquela terra por parte do povo de Israel não seria possível. Dois homens expressam opiniões otimistas sobre as possibilidades de estabelecimento na terra. Na verdade, não havia diferença alguma entre os factos que os doze homens tinham observado, mas sim entre os modos como cada um dos grupos tinha avaliado a situação. Não se trata de que os espiões tivessem mentido; até podem ter descrito uma situação real, mas a sua atitude perante a mesma era negativa.
É possível contemplar todos os factos da realidade desde diferentes ângulos. Assim, os espiões descreveram os factos como estes pareciam a seus olhos. A discussão entre os dois grupos não se centrava em torno das características geográficas e políticas da terra, mas sim sobre a atitude do povo perante ela; na possibilidade de a conquistar e a força com a que o povo contava para entrar nela, depois de um período tão prolongado de escravidão. Os espiões não foram enviados para descobrir o verdadeiro carácter da terra, mas sim o verdadeiro carácter do povo que havia de entrar nela. Os chefes das tribos prestaram atenção somente às características objetivas, aos gigantes, às cidades amuralhadas, e não viram mais além, não empregaram a visão e a esperança, a perspetiva e a fé. Através da fé, é possível ver mais além do horizonte, do aqui e do agora. Mas os chefes das tribos não empregaram a fé. O pecado dos espiões foi a impossibilidade de olharem para o futuro.
A reação de Moisés perante o pecado dos espiões foi, de certo modo, estranha. Moisés rende-se. A sua reação não é de modo algum severa. Na realidade, ele quase não reage. O líder não consegue dar uma resposta perante o pecado dos espiões. Está vencido. Como não pode destruir o povo que tanto ama, em nome desse amor dirige-se ao Criador para solicitar o seu perdão. No entanto, desta vez De’s não está disposto a mudar a sua decisão e por isso responde a Moisés de forma verdadeira: “O povo há de permanecer no deserto até que morram todos aqueles que não foram capazes de ter fé e esperança na chegada à Terra.
A geração dos patriarcas, a geração dos que saíram do Egito, há de permanecer no deserto. Esta geração que cresceu, por um lado, oprimida pela escravidão, e, por outro, rodeada de milagres, habituando-se assim à passividade, não há de entrar na Terra Prometida. É necessário aguardar pelo desaparecimento da geração do sofrimento, da geração que deseja voltar para o Egito, da geração do choro, até que surja uma nova geração que saiba viver na fé, na esperança e na visão. É necessário deixar de confiar nesta geração de escravos, e continuar a confiar no futuro do povo e na realização do seu destino.

A rebelião em nome da ideologia – Parashá Korach

Corach, filho de Itzhar… e Datan e Aviram… encheram-se de soberbia e levantaram-se contra Moisés, acompanhados por duzentos e cinquenta homens dos filhos de Israel, toda a gente de renome e conjurando-se contra Moisés e Aarão, enfrentando-os: “Atribuís-vos demasiado. Toda a congregação é santa e o Eterno está no meio dela. Porque então vos engrandeceis sobre o povo do Eterno?” Ao ouvir isto, Moisés prostrou-se com o rosto em terra e logo disse a Corach e à sua gente: “Amanhã o Eterno fará saber quem é Seu e quem é santo e quem quer a Seu lado, já que quem for escolhido por Ele poderá aproximar-se a Ele…” E a terra abriu a sua boca e engoliu-os, junto com as suas tendas e todos os seus pertences…”  (Números, 16, 1-35)

Esta parashá fala-nos acerca da primeira rebelião do povo contra a autoridade e liderança de Moisés e Aarão; rebelião originada apenas na sede de poder. Desta vez não se tratava de queixas devido à fome e à sede, nem ao medo da guerra ou dos inimigos do povo. Desta vez tratava-se de uma luta pelo poder, baseada, aparentemente, na procura de justiça e igualdade. “Toda a congregação é santa. Não existe diferença no que diz respeito ao grau de santidade, nem existem classes no povo de Israel”, alegou Corach. “Porquê haverão então Moisés e Aarão de se engrandecer sobre o povo?”, pergunta Corach, e decide desafiar a sua autoridade.

Seguindo o protesto de Corach, cria-se uma coligação de todos os que se declaram oprimidos, de todos os que tinham aspirado ao poder político ou ao sacerdócio, sem o terem obtido até então. Corach ben Itzhar, da tribo dos levitas, juntamente com Datan, Aviram e Or ben Pelet, três presidentes da tribo de Reuben, e outros duzentos e cinquenta homens, presidentes das comunidades, pessoas de grande nome, insurgiram-se contra Moisés e Aarão. Desta vez, quem vai à luta são representantes das classes privilegiadas do povo, os seus líderes.

As três etapas descritas no começo da luta revelam-se nos três verbos iniciais da parasha: “encheram-se de soberba, levantaram-se e conjuraram” Corach iniciou a rebelião, mas não a levou a cabo de forma individual, transformando-a, pelo contrário, numa revolta coletiva contra a liderança existente. Deste modo, a sua rebelião adquiriu proporções elevadas. Depois dos seus protestos iniciais, uniram-se-lhe duzentos e cinquenta homens que o seguiam e apoiavam.

Quais eram os argumentos de Corach e dos seus seguidores? Começaram o seu protesto baseados numa série de afirmações: Toda a congregação é santa e De’s está no meio dela. Se é assim, os sacerdotes deformam a imagem do povo, transformando-o num povo de estrangeiros, erguendo um muro entre De’s e os membros do povo. Daqui provém a proposta principal: “Porquê então vos engrandeceis sobre o povo do Eterno? Todas as vossas ações são pura arrogância. Vós vos engrandeceis e humilhais a congregação de De’s.” A palavra “arrogância” contém o sentido pleno da rebelião. Esta palavra anula a profecia de Moisés, nega o valor da sua missão e, de um só golpe, apaga toda a mensagem que Moisés entregou ao povo em nome de De’s.

Corach era um demagogo, cuja ação era guiada por ambições egoístas. A sua inimizade com Moisés começou no momento em que Aarão e a sua família receberam a função do sacerdócio, enquanto os levitas ficavam com o nível de ajudantes dos Cohanim. No entanto, sabemos que todo aquele que se insurge contra a autoridade de quem está acima dele, precisa de uma ideologia para convencer o povo acerca da validade da sua rebelião, para aumentar assim o seu poder. É necessário encontrar um motivo principal, um lema capaz de condensar a validade da luta contra o regime atual. O lema empregado por Corach na sua luta contra os líderes foi: “Empreguem a vossa inteligência; toda a congregação é santa”. Do ponto de vista lógico, realista, até o mais simples lenhador tem os mesmos direitos que Moshé Rabenu. Um chamamento desta natureza, direcionado às classes populares, terá sem dúvida ecos positivos, já que aparentemente promete a libertação da autoridade central, elogia a sabedoria do homem simples e legitima o direito do indivíduo e do povo para levarem a cabo a sua vontade baseados na sua própria inteligência. Vemos aqui todos os indícios próprios de uma rebelião, onde se aspira tão somente a que o poder mude de mãos, e para isso afirma-se estar a agir em prol do povo.

O judaísmo não se opõe às lutas baseadas em motivos reais, para além das meras ambições pessoais. A diferença entre uma luta justa e uma injusta reside nos motivos da mesma. Quando a causa de uma disputa é “em nome do Céu”, para chegar à verdade, em nome de um princípio religioso, tem legitimidade.

A análise da história de Corach mostra-nos a necessidade de examinar os motivos desta contenda, bem como os de todas as contendas. Corach defendia que estava a agir “em nome do Céu”, enquanto Moisés e Aarão estavam a agir levados pela sede de poder. “Porque haveis de vos engrandecer sobre a congregação de De’s?” Como resposta a estas acusações, Moisés defende que Corach age desta forma porque deseja ser Cohen no átrio.

Como é possível decidir quem está a proferir as afirmações verdadeiras? O facto de Moisés precisar de um milagre para demostrar a veracidade das suas afirmações sublinha a dificuldade de tal constatação.

Claro que seria possível supor que todas as partes envolvidas agiram com retidão, mas não é este o caso que a nossa parashá nos traz, nem o que os nossos sábios decidiram, já que eles chegaram à conclusão de que Corach não agiu com motivações sinceras.

Esta característica tão confusa dos conflitos leva-nos à necessidade de examinar cuidadosamente cada caso, para compreender os seus motivos. Mas não é suficiente analisar os motivos que cada uma das partes declara ter; é necessário levar a cabo um exame mais profundo, que considere os traços de carácter das pessoas no conflito, a sua conduta, etc. Até os motivos mais egoístas podem ser apresentados, por vezes, como algo aparentemente reto e elevado.

Na parashá Corach, só ele e os membros da sua comunidade agiram baseados em interesses egoístas. Moisés, pelo contrário, tanto nesta situação como em muitas outras, revela-se um líder político exemplar, que age exclusivamente baseado em interesses nacionais e espirituais.

Moisés representa o exemplo de que uma função política pode ser levada a cabo com o objetivo de servir o povo, enquanto Corach nos ensina que uma pessoa pode entrar num conflito alegando que se baseia em ideais sublimes, quando na realidade apenas persegue os seus próprios interesses. Na aparência trata-se de ideais: rebelião contra a tirania em nome da igualdade; autoridade do povo no lugar da autoridade dos líderes.

Os nossos sábios afirmam que Corach era um homem avesso. Não se insurgia contra o Céu, já que sabia que tal insurreição não tinha possibilidades de sucesso. Muito pelo contrário, Corach fala acerca da santidade da congregação.

Quando Moisés ouve as reclamações de Corach fica derrotado. Se tivesse de lutar pela honra divina, em nome do Criador, teria forças para o fazer. Mas, pelo contrário, neste caso, em que a sua reação seria interpretada como uma tentativa de defender o seu próprio nome e o da sua família, Moisés sente-se incómodo. Moisés sabia defender os outros, mas não a si próprio. Por isso, Moisés coloca a solução do conflito e a demonstração da sua inocência em mãos do Criador. Solicita, portanto, que seja levado a cabo um julgamento público sobre ele e sobre Corach no qual De’s seja o juiz.

Moisés, Aarão, Corach e a sua comunidade colocam-se à entrada das suas tendas para receber a decisão divina. A resposta divina a Corach e aos seus seguidores não tarda em chegar: desce fogo do céu e destrói Corach e quem o seguia na sua luta contra Moisés. A terra abre-se para engolir os rebeldes, e seguidamente propaga-se uma epidemia entre o povo. “E a terra abriu a sua boca”. A severidade do castigo não deixa lugar a dúvidas no que diz respeito ao veredito: Corach morre e Moisés é o líder escolhido pelo Criador.

Existem líderes cuja autoridade provém do facto de terem sido escolhidos pelo povo. Noutros casos, a autoridade provém das suas ações, ou de características da sua personalidade. A primeira fonte da autoridade de Moisés, apesar de não ser a única, é a sua nomeação celestial. A voz de Deus constitui a fonte da sua autoridade.

Uma ordem heterónoma para um homem autónomo – Parasha Chukat

E disse o Eterno a Moisés: “Eis aqui o preceito que dispõe o Eterno. Diz aos filhos de Israel que tragam uma vaca vermelha sem mácula alguma e sobre a qual não se tenha posto jugo. Dá-la-eis a Eleazar o sacerdote, que a tirará do acampamento e a fará degolar na sua presença… Quem tocar no cadáver de um homem ficará impurificado durante sete dias. Deverá purificar-se com as cinzas da vaca vermelha…”​ (Números, 19, 1 – 22)

As leis acerca da Pará Adumá, a Vaca vermelha, descritas nesta parashá, estão incluídas dentro das leis de pureza y impureza da Torá. De acordo com estas leis, sacrificava-se a vaca vermelha, queimavam-se os restos, e as suas cinzas serviam como elemento purificador para aqueles que tinham ficado com impureza ritual como consequência do contacto com um morto. Era imprescindível que a vaca fosse totalmente vermelha. Se dois dos seus pelos fossem de outra cor, tornava-se inválida para tal função. Também não podia ser empregada para trabalhar a terra ou para transportar cargas quando estava destinada a purificar o homem impuro, e só depois de ter sido purificado através das cinzas da vaca, era permitido ao homem impuro entrar no templo.

O homem de Israel deve cumprir com diferentes tipos de preceitos. Existem preceitos positivos e negativos. Existem leis racionais, compreensíveis, morais, e também preceitos que são ordens dogmáticas que não podemos questionar e acerca das quais não podemos receber resposta sobre a sua causa ou fim. Entre estas leis destaca-se o preceito da Pará Adumá (Vaca Vermelha), a que se refere a nossa parashá. Este preceito constitui um segredo, um enigma para além do nosso entendimento. Foram levadas a cabo numerosas tentativas de explicar o sentido deste preceito e das diversas leis que o especificam, mas o preceito parece ter uma dimensão mística, espiritual, para a qual é difícil fornecer explicações racionais. A mente e a razão humanas são capazes apenas de perceber a realidade sensorial e o mundo dos fatos reais, com os quais nos podemos relacionar de forma adequada. Isso não ocorre no que diz respeito aos elementos que se encontram para além desta realidade.

A cerimónia relacionada com a Pará Adumá constitui uma atividade de purificação pessoal, uma experiência individual que purifica o judeu do ponto de vista ritual e lhe permite retomar o seu estado de pureza. A sua eficiência não se baseia no sentimento nem no raciocínio; exige obediência e submissão, através do submetimento do pensamento e da vontade perante a lei divina.

Segundo a conceção judaica do sistema de leis e preceitos, é possível analisar o significado dos preceitos, mas no entanto é necessário cumpri-los mesmo no caso de não ser possível dar uma explicação racional ou moral para os mesmos, tal como acontece com os preceitos de Shatnez (a proibição de misturar tecidos numa peça de roupa), ou o preceito de Pará Adumá.

Do ponto de vista teórico existem razões diversas para o cumprimento dos preceitos, e cada uma das escolas de pensamento contribuiu com a sua interpretação própria. O chassidismo considerou que o cumprimento dos preceitos permitia uma aproximação íntima com o criador. A escola filosófica destacou os aspetos morais, históricos, utilitários e intelectuais relacionados com os diversos preceitos. Os estudiosos de Cabala defenderam que o cumprimento dos preceitos tinha uma intenção divina, cósmica, e que o preceito representa o aspeto exterior que aponta para um segredo divino. Mas seja qual for o ponto de vista que tenhamos no que diz respeito aos preceitos, é de sublinhar que o seu cumprimento é obrigatório. O judeu não cumpre os preceitos apenas baseado na sua identificação espiritual com os mesmos mas sim baseado na sua obrigação de o fazer. Claro que se o homem alcançou um nível no qual cumpre os preceitos baseado na sua identificação interior com eles, reveste-os de um nível espiritual superior, mas a razão elementar do seu cumprimento continua a ser que são ordens divinas e que o homem tem que as cumprir.

O judaísmo não é só uma crença ou uma religião, é também um sistema legal. O sistema legal pressupõe a existência de uma congregação que aceita as normas que o compõem. Se aprofundarmos esta análise, descobriremos que todo o sistema legal se baseia num conceito fundamental: O direito e a capacidade do governador de estabelecer as suas leis. Desta premissa derivam as leis do judaísmo, sendo a sua origem o pacto entre De’s e o seu povo.

O judeu religioso assume dois compromissos: o cumprimento dos preceitos e a identificação com o destino do povo. Ambos exigem um alto nível de fé, já que é possível considerar que este sistema legal constitui uma ordem natural dentro da qual o Homem nasce, e que o Homem os aceita como uma realidade. Na sua vida pessoal, o Homem aceita sobre si o cumprimento dos preceitos que se referem a cada aspeto da sua vida, e entre eles existem também preceitos que lhe são incompreensíveis.

A Torá distingue entre dois tipos de leis: chuká e mishpat. Chukim são geralmente leis ilógicas, a tal ponto que se certa conduta não nos fosse exigida por ordem divina, nunca a faríamos. Supomos que cada lei tem lógica e intenção divinas, mas não podemos saber qual é o seu objetivo. Os mishpatim têm também origem numa ordem divina e exigem compromisso e cumprimento, mas são leis que refletem valores culturais.

É possível definir uma lei como uma norma e ordem absolutas, que exigem obediência total, sem reparo algum. Um judeu praticante aceita uma ordem da Torá do mesmo modo que o doente aceita as instruções sobre medicamentos por parte do seu médico. É possível tentar analisar e averiguar, mas em última instância torna-se necessário aceitar a lei baseados na nossa fé.

A lei tem certos aspetos característicos. Em primeiro lugar, é inalterável. Não depende das transformações da situação ou da ideologia, ou das condições económicas e sociais, que estão em constante mudança. A lei religiosa tem o mesmo carácter inalterável das leis naturais. Uma lei constitui um elemento básico que determina e dirige a existência física da natureza e o comportamento do homem, e por isso deve ser inalterável.

A segunda característica de uma lei é a sua exigência de obediência e submissão total, exatamente porque exige renúncia à compreensão humana. Apesar de o Homem ser um ser pensante, a lei exige muitas vezes renunciar ao entendimento.

O judeu crente aceita a Torá na sua totalidade, na sua qualidade de lei inalterável e incompreensível. Na realidade cumprimos todos os preceitos — também os que têm uma explicação racional no aspeto social e cultural — como se fossem leis. Não diferenciamos entre os preceitos; aceitamos e cumprimos todos eles, na sua qualidade de obrigações religiosas absolutas. O motivo pelo qual consideramos que todos os preceitos têm de igual modo o status de lei é que não confiamos na razão como guia no que diz respeito ao sistema legal. Em muitas ocasiões a razão humana sente-se perplexa perante a decisão que deve ser tomada, já que o entendimento humano deve necessariamente pesar os prós e os contras de cada uma das alternativas.

Muitas vezes a razão coloca o Homem perante uma encruzilhada, sem ser capaz de decidir com firmeza qual deve ser o caminho a tomar e qual é a consideração que tem o valor moral mais elevado. Este facto indica-nos que o sistema legal não se deve basear na razão humana. Por isso, a Torá assinala valores e preceitos que devem ser aceites em qualidade de leis, o que determina que não podem ser reformados, mesmo no caso da nossa razão se sentir confundida. Se esta condição não existisse, teria sido possível anular cada uma das leis, com base no raciocínio dos homens. A lei é o limite que restringe as tendências do coração do homem, mas não constitui um limite claro e evidente; encerra uma razão e uma atitude que não se revelam perante os olhos do homem.

A maldição transformada em bênção – Parashat Balak

E viu Balac, filho de Tsipor, tudo o que Israel tinha feito aos amorreus, e temeu muito Moab o povo de Israel (…) E Balac (…) que nesse tempo era rei dos Moabitas, enviou mensageiros a Bilam (…) Para lhe dizer: “Eis que um povo saído do Egito cobre a face da terra e agora habita frente a mim. Peço-te que maldigas esta gente, porque é demasiado poderosa para mim.

Talvez possa conseguir derrotá-los e expulsá-los da terra, porque sei que quem tu abençoas, abençoado é, e aquele a quem tu maldizes, maldito é” (…) E respondeu Bilam a Balac: “Eis-me aqui, mas por acaso eu poderei dizer qualquer coisa? A palavra que De’s puser na minha boca é a que eu direi.” E disse Bilam a Balac: “Constrói-me sete altares e prepara-me sete touros e sete carneiros” (…) E elevou esta invocação: “Do alto das rochas o vejo e desde o cimo das colinas o contemplo.

O seu povo será solitário e não se contará entre as demais gentes” (…) Então disse Balac a Bilam: “Que me fizeste? Encomendei-te que maldissesses os meus inimigos mas tu encheste-os de bênçãos.”
(Números, 22, 2-41, 23, 1-13)

Nesta parashá somos testemunhas da finalização da conquista da margem oriental do Jordão e do começo de uma nova etapa na qual o povo hebraico se assenta nas margens do Jordão, para atravessar o rio e entrar na terra de Canaã. O povo de Israel já não é um povo de errantes no deserto, mas sim um povo que conquistou uma terra, a partir da qual enfrenta alguns dos povos vizinhos.

Como consequência deste facto, torna-se necessário considerar o povo de Israel como elemento novo dentro da “geopolítica“ da zona de Canaã, e com o qual os demais povos se começam a relacionar. Parte do povo começa a construir cidades na margem oriental do Jordão, facto que desperta o interesse dos povos vizinhos. Quando povo de Israel começou a aproximar-se da terra prometida, levantaram-se outros povos que estavam assentados a oriente do Jordão e saíram ao ataque o cananeu, o rei de Moab e o de Sichón. Depois de lutar e triunfar sobre estes povos, o povo de Israel prossegue a sua marcha até chegar ao limite de Moab, onde reinava Balac, filho de Tsipor.
Balac viu que a tentativa de vencer o povo de Israel pela força tinha fracassado. Os três povos anteriores que tinham lutado contra Israel tinham sido vencidos, e por isso Balac escolhe um caminho diferente, original e novo: decide empregar “armamento não convencional”.

Renuncia em princípio à guerra e tenta conseguir a colaboração do profeta e mago Bilam, filho de Beor, para ele maldizer o povo de Israel.
A maneira como Balac analisa a situação na nossa parashá é ampla e cuidadosa: “um povo sem nome livra-se da escravidão no Egito, faz caminho entre os demais povos e conquista rapidamente uma terra alheia para se instalar nela.”

Analisando as palavras de Balac, podemos compreender que elas não descrevem uma situação habitual; elas elevam o comportamento do povo de Israel ao nível de um acontecimento com importância histórica, cujas causas se entrelaçam com factos acontecidos anteriormente e que terá consequências futuras.

O triunfo de Israel sobre os amorreus, longe de constituir um facto efémero, é um acontecimento capaz de modificar de forma total o mapa da região e as relações de força entre os povos.

Balac, na sua qualidade de monarca de um reino forte e importante na época bíblica, foi o primeiro em compreender que “eis um povo saído do Egito” Não se trata de um grupo de nómadas que vagueiam pelo deserto, nem de um conjunto de famílias; vão enfrentar um povo.

Balac, filho de Tsipor, informou o seu povo do perigo que representa a vizinhança do povo de Israel, e por isso sugere procurar a cooperação entre Midian e Moab. É possível supor que Balac desejava conseguir a ajuda de outros povos vizinhos na sua luta contra o povo de Israel, para o qual era necessário conseguir a maldição de Bilam sobre Israel.

Balac chama Bilam para ele vir de terras longínquas fazer ouvir publicamente a sua maldição sobre Israel. O objetivo central da maldição era despertar o entusiasmo pela luta contra Israel e assegurar assim o triunfo sobre este povo. Balac compreende que a única maneira de triunfar sobre um povo “anormal“, que não responde às leis da natureza e da política, será através de uma estratégia “anormal“, e por isso recorre a Bilam.

A Torá apresenta a opinião de Balac, filho de Tsipor, como ponto de partida e explicação do que acontece nesta parashá. É ele quem destaca as proporções do perigo que o povo de Israel representa, em consequência do qual se move, se aterroriza e envia representantes a Midian. Com base na opinião de Balac, desencadeia-se uma série de acontecimentos que vão no sentido de prejudicar o povo de Israel.

Do relato bíblico retira-se a conclusão de que a proposta de Balac de maldizer o povo de Israel foi um dos factos mais vis que um ser humano fez contra Israel. No entanto, a maldição tornou-se uma bênção, e no fim o povo de Israel saiu favorecido.

A figura de Bilam, a quem foi pedido que maldissesse Israel, é muito interessante, ao ponto de não ter paralelo em todo o texto bíblico. Considera-se Bilam um profeta entre os povos, a quem representa em espírito e não pela força.

Se olharmos para ele na nossa parashá, Bilam aparece como uma pessoa com ideias claras. Durante todas as suas negociações, primeiro com os emissários de Balac, e depois com o próprio Balac, Bilam volta uma e outra vez a repetir a afirmação de que não pode agir nem opinar de forma independente e de que tudo depende das palavras que De’s puser na sua boca.

A partir do texto podemos compreender que a ideia da maldição tinha-se apoderado de Balac como um “dibuk” (obsessão), para o qual nenhum esforço parecia excessivo, e todo o preço devia ser pago. Os representantes que ele envia para convencer Bilam são os seus próprios ministros, e promete-lhe também uma grande recompensa.

Bilam vem pra maldizer, e no fim vê-se obrigado a abençoar. Da primeira vez, Bilam tenta maldizer o povo de Israel a partir de uma montanha e não o consegue fazer: a maldição transforma-se em bênção. Balac tenta então uma mudança de tática: leva Bilam para outro sítio, supondo que foi o lugar geográfico que determinou o fracasso do mago em maldizer o povo.

Claro que, tanto no novo lugar como nos diferentes lugares onde o mago tenta expressar a sua maldição, também não o consegue fazer, e, em cada nova oportunidade, a maldição transforma-se em bênção.

Na Torá aparecem as palavras de Bilam, não só na qualidade de sua opinião pessoal, mas também como um facto que ele apresentou perante o mundo, por isso estas palavras representam a mensagem das nações do mundo ao povo de Israel. Até hoje começamos as nossas orações com a bênção deste profeta perante os povos: “Quão belas são as tuas tendas, ó Yaacov, e as tuas moradas, ó Israel.”

As festividades de Israel – Parashat Pinchas

E no dia 14 do primeiro mês celebrar-se-á Pesach do Eterno. E o dia 15 desse mês será festivo. Durante sete dias comer-se-á Matzá. O dia primeiro será de santa convocação. Não fareis nele trabalho servil algum (…) Assim fareis os sete dias, oferecendo ao Eterno suas oferendas () E o dia primeiro do mês sétimo (Rosh Hashaná), será de santa convocação, não fareis nele trabalho servil. É dia que se celebrará ao som da trombeta () E o dia 10º do mesmo mês (Yom Kipur) será para vós de santa convocação. Afligíreis vossas almas e não fareis trabalho servil () E o dia 15 do mês sétimo será do mesmo modo de santa convocação (Sucot). Nele não fareis trabalho servil e celebrareis a festividade ao Eterno durante sete dias () E disse Moisés aos filhos de Israel tudo o que o Eterno tinha ordenado.“ (Números 29,1 – 39)

Esta parashá apresenta a sequência temporal dos acontecimentos da Torá; abre uma janela para o mundo fascinante das festividades, para que, através delas, conheçamos o seu significado e importância, assegurando assim a memória das tradições do povo judeu. Para além deste acervo de festividades que aparecem na Torá, existem outras que surgem e se tornam vigentes a partir das palavras dos nossos sábios, que fixaram normas e festividades em diferentes épocas, posteriores à entrega da Torá. As festividades da Torá e as estabelecidas pelos nossos sábios abrangem na sua totalidade os dias de alegria, invocação e memória do povo de Israel ao longo de todas as gerações.

Para qualquer cultura, a organização temporal permanente e sistemática do calendário é muito importante, pois os valores que regerão a vida do povo determinam-se torno da fixação de datas e celebrações. Sem uma ordem estabelecida no tempo, o Homem não pode gozar da visão íntegra do desenvolvimento da sua vida junto dos seus correligionários. O calendário anual como estrutura integral de significados é a chave do entendimento de todas as culturas. Mas o calendário do povo judeu tem um significado especial, por dois motivos: um que emerge do destino singular que o acompanha, e o outro que surge da escala de valores da Bíblia, que permite a estabilidade da existência espiritual do povo de Israel.

Um dos fatores importantes que caracterizam a forma de vida judaica é sucessão de festividades e o seu significado. O calendário judaico abrange um programa de vida completo para as comunidades, para as famílias e para cada indivíduo.

O destino do povo de Israel é o de um povo que passou a maior parte da sua história fora da sua terra, quer dizer que esteve carente do elemento básico para a construção da consciência coletiva. Desta forma, o primeiro motivo tem especial importância, já que o povo teve que se aglutinar ao redor de um elemento comum: a ordem dos tempos de celebração, para que as festividades reunissem as comunidades dispersas por todas as partes do mundo. A similitude de festejos e recordações sobre um mesmo evento ao mesmo tempo consagrou significado ao emprego de símbolos comuns.

Algo muito conhecido é o fato de as festividades do povo de Israel terem um duplo carácter: por um lado recorda-se o acontecimento no qual se revelou a aparição divina, e, por outro, são dias de regozijo pelas bênçãos de De’s sobre o nosso trabalho em casa e no campo. Cada festa representa uma determinada época agrícola ou uma estação do ano.

Sucot, que lembra a vida em cabanas dos judeus no deserto, também é a festa das colheitas. Shavuot recorda-nos o recebimento da Torá no monte Sinai e é também a festa das primícias do campo. Pesach, que representa a saída do Egito, é também a festa da primavera.

As festividades do povo judeu são “tempos“, quer dizer, momentos especiais de reencontro com a História e com as expectativas de futuro histórico.

A essência do tempo sagrado é permanente e estável. Os dias úteis, que funcionam segundo o relógio, dirigem-se num só sentido, sem possibilidade de regressão. No entanto o tempo sagrado é permanente e estável, já que se detém no seu limite e regressa ao princípio.

As cerimónias festivas foram criadas para tirar o Homem da sua vida quotidiana e colocá-lo na génese da sua existência. A festa sagrada é o regresso divino, é o momento triunfal, que nem transcorre nem se acaba.

Quem festeja uma festa anual dá-se conta de que toda a festa equivale na sua vivência à festa do ano anterior, à da casa do avô, do pai e assim até ao princípio de cada geração. Quem se regozija, sincronizou tempo e transporta-se ao momento sagrado que emanou da Torá.

Portanto, o homem que celebra as festividades de Israel não só vive na dimensão histórica que se sucede mas também reconhece outra dimensão: a do tempo sagrado que, pelo seu sabor glorioso, subsiste e permanece ao longo de todos os tempos.

Como pode um homem criar uma experiência de “tempo sagrado“ através de uma festa bíblica? Determinando um tempo consagrado a De’s, ajustando seus atos para estabelecer a diferença face ao dia comum do ano. Assim se consagra a De’s para consciencializar um ato simbólico. A santificação da festa surge do contacto que o homem estabelece com o De’s da História e do presente. A importância está na localização, na saída do tempo “útil” que transcorre e muda, para ficar no momento sagrado, que persiste. Existem dois aspetos nos tempos da Bíblia: um é o que se refere à visão retrospetiva de De’s, que redimiu povo judeu; o segundo refere-se ao ciclo da natureza, onde se reivindica o facto de o Homem ser criação divina e de todas as suas capacidades e sucessos se deverem ao criador.

Basicamente, em cada festa e celebração do ano judeu assinala-se uma ideia central que a festa introduz na nossa consciência através dos símbolos espirituais que acompanham as tradições e os costumes.

O ano judeu e todas as suas cerimónias, festas, começos de mês e dias de reconhecimento e alegria foram destinados a garantir os valores nacionais, culturais e religiosos; os valores morais e sentimentos nacionais, ideias que representam a pedra fundamental do pensamento e da existência do judaísmo. Nisto reside a diferença entre a religião judaica e as de outros povos.

Para outros povos do mundo, o conceito de “tempo“ tem um significado físico, que enquadra e estabelece meses e semanas pelos quais uma determinada sociedade se rege. Mas para o povo judeu, que abençoa nas suas orações: “bendito seja Israel e os seus tempos“, o tempo tem valor sagrado, já que os acontecimentos religiosos e culturais se prescreveram para reforçar o entendimento dos valores espirituais, que dão à nação um carácter distintivo.

É sabido que povo e a sua cultura não podem sobreviver se os seus filhos não derem vigência e significado aos eventos importantes da vida dos seus patriarcas e às suas experiências coletivas ao longo de toda a história.

Mas a tradição não se mantém somente pela sua capacidade de retrospeção automática e pela sua capacidade de evocar o passado. A tradição deve viver também no presente e dirigir-se para as futuras gerações. Em cada geração, o judeu deve atualizar as festividades, os seus símbolos, e conceder-lhes o significado relevante para a sua existência. Cada geração deve perguntar-se o porquê de continuar no caminho dos seus antepassados e, ao assinalar as festas, interrogar-se sobre os conteúdos que devem ser destacados e a forma de os transmitir às gerações vindouras.

As festas de Israel são encontros peculiares onde o tempo reúne o Homem com De’s. Estes encontros detêm o Homem na sua corrida pela vida e colocam-no num momento de reflexão absoluta e união sagrada.

O código penal segundo a Torá – Parashat Matot-Masei

E disse o Eterno a Moisés: — Diz aos filhos de Israel: “Quando atravessardes o Jordão para a Terra de Canaan designareis cidades de refúgio para quem entre vós tiver matado alguém sem querer. Estas cidades servirão de asilo (…), para que não seja justiçado antes de ser julgado perante o tribunal da congregação. As cidades destinadas para isso serão seis, que serão para vós cidades de asilo (…) tanto para os filhos de Israel como para o estrangeiro e o peregrino de outras terras, para que se possa refugiar ali qualquer pessoa que tirar a vida ao seu próximo por engano. Mas se o tiver ferido de morte com instrumento de ferro será considerado homicida e, por tanto, será morto irremediavelmente… Mas se, pelo contrário, causar a morte do seu próximo acidentalmente e sem ódio, derrubando-o ou mandando-lhe algo para cima sem querer, ou, se sem o ver, o matar acidentalmente com uma pedra, sem o fazer premeditadamente, o tribunal julgará entre o que matou e o vingador do sangue, segundo os seus conceitos. (Números 35,9 – 25)

A Torá distingue claramente entre duas formas de assassinato: assassinato premeditado ou com intenção e assassinato por erro ou acidental. Algumas vezes o Homem decide cometer um assassinato e atentar contra o seu próximo. Sabe que é uma ação proibida e, no entanto, comete-a, matando-o. O castigo para esta ação é, segundo a Torá, a pena de morte.

Existem circunstâncias nas quais uma pessoa pode causar morte a outra sem intenção premeditada, pois não existe ódio nem causa para o prejudicar; em alguns casos pode tratar-se até de um desconhecido. Para nosso pesar, por vezes somos testemunhas de acidentes nos quais acontece uma morte involuntária.

Nesta parashá, a Torá fala-nos do caso de um lenhador que se encontrava a trabalhar no bosque e, sem intenção alguma, o machado escapou-se-lhe da mão e matou uma pessoa que se encontrava no local. Neste caso não se considera o lenhador um homicida e por tanto não recebe o castigo correspondente ao assassinato.

Existe um castigo especial na Torá para o assassinato por imprudência, no caso de não existir maldade nem intenção premeditada. O homem que cortava lenha no bosque, segundo a Torá, não pretendia matar ninguém; estava apenas a fazer o seu trabalho. Mas incorreu no erro de não prever a sua ação, inspecionando as suas ferramentas, ou reforçando o machado antes de começar a trabalhar. Atualmente este facto é parecido ao que pode acontecer a um condutor que acidentalmente mata uma pessoa devido aos seus travões não estarem em boas condições. Sem dúvida que o acontecimento não foi intencional, mas todo o indivíduo deve saber que existem determinados objetos que, se não receberem o cuidado adequado, podem transformar-se em instrumentos mortais, e por isso a negligência pode ter certo grau de criminalidade.

A Torá ensina-nos que o homem que incorresse numa falta deste tipo tinha que ir para a “cidade refúgio” (Ir Miklat) destinada a este fim, e da qual só podia sair depois da morte do Cohen Gadol (Grande Sacerdote).

Em Eretz Israel e do outro lado do rio Jordão havia seis cidades refúgio, para que fosse possível chegar a elas fácil e rapidamente a partir de qualquer lugar. Com a comparência do indivíduo, os juízes locais realizavam um julgamento. Se o assassinato tivesse sido por imprudência, ficava na cidade. Se, pelo contrário, tivesse sido deliberado, recebia a sua condenação.

Nas interpretações do Talmude dão-se diversas explicações sobre o exílio do assassino imprudente na cidade refúgio. A explicação mais simples e aceite é a que se refere à proteção do assassino de uma possível represália de sangue (lei de Talião), quer dizer, o facto de um parente do morto poder perseguir o assassino e matá-lo pelos seus próprios meios (Gohel Hadam).

Outros interpretam que o desterro na cidade refúgio representa a gravidade da falta cometida pelo assassino, mesmo no caso de ser um ato involuntário.

A Torá entende que o assassinato não pode ser ignorado em caso algum, nem sequer no caso de imprudência. Assim, o desterro deve provocar a reflexão necessária do homem e de todo o povo, para entender o elevado valor que a vida humana tem.

A partir deste capítulo aprende-se que o sistema jurídico-legal hebraico considera muitos e variados elementos de peso para decidir sentenças e estabelecer indemnizações, sendo um desses elementos os argumentos da intenção por parte do homicida.

A pena de morte só pode ser aplicada em casos reais de premeditação, só que é muito difícil provar um ato intencional deste tipo.

Na maior parte dos povos do mundo, considera-se que todo o crime é resultado de uma ação ou de um pensamento deliberado. Mas isto não ocorre nas leis do judaísmo, onde os resultados não sempre são indicadores de ações planeadas antecipadamente. Em todos os casos é necessária a comprovação absoluta dos factos. E para isto existe na lei judaica o amparo, onde as testemunhas deverão testemunhar não só sobre o facto em si, mas também sobre o facto de o assassino ter sido devidamente advertido sobre o facto. (Atrahá). É necessário que a pessoa que vai cometer um delito tenha ouvido que a ação que vai realizar é proibida pela Torá e que a sanção correspondente é a pena de morte. A advertência não é suficiente se não for acompanhada da demonstração de que o culpado tomou conhecimento da mesma, respondendo “Sei-o e aceito-o”. Sem o cumprimento de todos estes requisitos, a sanção não se torna efetiva.

A Torá dá aos juízes autoridade para julgar e inquirir sobre as intenções do culpado, já que eles são o ramo legal e jurídico do Tribunal de Justiça, e estão encarregados de valer pela lei e pela ordem pública do povo de Israel. Estes tribunais sempre tiveram a autoridade para decidir sobre indemnizações e castigos, e igualmente de sentenciar castigos, inclusivamente a prisão perpétua, apesar de este tipo de sanção não aparecer entre as principais leis da Torá. Também podiam decidir sobre chicotadas, reconhecendo este tipo de castigo como “golpes de rebeldia”, para os infratores da lei, podendo chegar até à pena de morte.

O pior castigo era o das chicotadas. As chicotadas autorizadas para castigar as faltas deliberadas contra as leis bíblicas (obrigações de Não farás…) eram trinta e nove, e os delinquentes que incorriam repetidamente em factos graves recebiam a pena perpétua. A Kipa (pena perpétua), segundo o Talmude, também era atribuída nos casos em que os delinquentes tentavam aproveitar-se de subterfúgios dos argumentos ou das provas habituais. Por exemplo, quando o tribunal tinha a certeza que tinha sido cometido um delito premeditado mas não tinha havido suficiente advertência, a sentença era de cadeia perpétua em vez da pena de morte.

Para a pena de morte existiam quatro classificações, segundo a gravidade do assunto. A morte por lapidação (skilá), castigava a idolatria, a profanação do Sábado e casos graves de incesto e violação. Outro castigo era a fogueira (srefá). Na forca eram mortos os condenados por fornicação, e os assassinos eram degolados. (chenek)

Apesar de a Torá reconhecer a pena de morte, na história do povo de Israel foram muito raros os casos onde ela foi aplicada. O Talmud diz: “O San’hedrin que mata alguém em setenta anos é considerado assassino”.

A lei talmúdica (Halachá), estabelece condições e restrições muito específicas para proteger a vida humana.

Muitos preceitos atrasavam e até anulavam a pena de morte e as chicotadas. Ambos significavam um atentado do homem contra o seu próximo, e esses preceitos tinham por objetivo contemplar a possibilidade de erros humanos por parte dos juízes; por isso estas práticas foram limitadas ao mínimo possível. A Torá entende que, do ponto de vista dos princípios, não é recomendável que um homem, pela sua condição humana, tenha governo sobre outro.

É interessante mencionar que mesmo antes de entrar em Eretz Israel, ordenou-se a criação de seis cidades de refúgio. A conclusão que se pode retirar é que, considerando que muito sangue iria ser derramado na chegada à Terra Prometida, os indivíduos poderiam perpetrar numerosas mortes.

Daqui a importância de sublinhar a severidade do assassinato, sabendo que esta é uma falta irremediável, mesmo nos casos em que o assassinato seja acidental ou não intencionado.

O propósito da Torá não é castigar as pessoas tirando-lhes a liberdade, porque reconhece o valor dela, e por isso não se inclina a grandes tempos de encarceramento. Nos casos em que a própria segurança do indivíduo estiver em perigo, a Torá autoriza a restrição da liberdade. A Torá faz-nos refletir sobre o facto de que uma sanção ou condenação deve ser meditada e justificada à luz dos princípios e dos valores da religião do povo de Israel.

A Torá não decidia pela reclusão dos delinquentes em locais remotos e isolados da sociedade, mas tentava instalá-los nas cidades dos levitas, que reuniam as condições espirituais para ajudar, educar e reabilitar as pessoas que ali chegavam.

O paradoxo do povo escolhido – Parashat Vaetchanán

Pois vós sois um povo santo para o Eterno vosso De’s. O Eterno vosso De’s escolheu-vos por povo Seu entre todos os povos que há sobre a face da terra. O Eterno comprazeu-se convosco e vos escolheu, não porque éreis mais numerosos que os demais povos, na realidade éreis o mais pequeno, mas sim porque o Eterno vos amava e porque quis cumprir o juramento que tinha feito a vossos pais. Por isso vos arrancou da mão do faraó, rei do Egito, redimindo-vos da casa da servidão. Tende em conta, pois, que só o Eterno vosso De’s, um De’s fiel que guarda o Pacto e é piedoso até à milésima geração com quem cumpre os seus mandamentos, e dá o seu merecido aos que o aborrecem… (Deuteronómio 7, 1-10)

Muito se tem escrito sobre a ideia de Israel como povo escolhido (Am Segulá). Em cada geração e até à época atual, esta ideia tem sido objeto de diferentes reflexões.

Algumas vezes por discrepância, outras por evasão; algumas vezes por identificação entusiasta, e muitas vezes pela missão encomendada a toda a Humanidade. Evidentemente, o tema teve explicações cósmicas, históricas, biológicas espirituais, filosóficas e cabalísticas.

Nas diferentes correntes do pensamento judaico existem abordagens que tentam descrever a posição especial que caracteriza o povo de Israel e que o coroa como um povo virtuoso e escolhido.

Há quem argumente que a peculiaridade do povo de Israel emerge de uma virtude que não existe em pessoas não judias. Esta orientação coloca a natureza do indivíduo judeu como algo especial, e considera que o judeu, sem muito esforço nem ações especiais, ao nascer dentro do povo judeu, tem qualidades distintivas. Outros dizem que a peculiaridade do povo de Israel está na dimensão empírica, pois o destino do povo judeu é singular, e não existe nenhum tipo de analogia entre ele e outras nações. Mas o que é particular do povo judeu reside na sua história, que parece ser estranha quando comparada com a história da humanidade.

Há quem veja a essência do povo escolhido em conteúdos, valores e obrigações que transcendem com a sua crença. Segundo esta orientação, não existe nenhuma peculiaridade na natureza do povo; ela reside na sua vida e na sua fé.

Outros opinam que só depois de cumprir com a sua missão redentora é que o povo judeu poderá assumir a sua condição de povo escolhido. O povo de Israel, mesmo no caso de ser o povo escolhido, deve pôr-se a prova, porque a sua eleição não é predestinada. De acordo com esta posição, o povo de Israel deverá consegui-la pelos seus méritos.

O que fica claro, principalmente, é que a eleição do povo judeu não responde a regras de carácter biológico.

O carácter particular do povo de Israel reside na necessidade de entender que De’s o escolheu para o libertar do jugo do Egito, entregou-lhe as tábuas da lei e deu-lhe morada na Terra Prometida. Estes argumentos ratificam a causa da eleição e disposição da Providência para com o povo de Israel entre todos os povos do mundo.

Assim como lemos nesta parashá, não foi por serem numerosos nem pelo seu saber extraordinário, nem pela sua virtude inata ou histórica que o povo foi assinalado entre nós. Foi sim por amor, o amor que oferece uma resposta ao amor divino. Abraão Isaac e Jacob foram devotos de De’s e andaram nos Seus caminhos. Por isso De’s assinou um pacto com eles e prometeu-lhes distinguir os seus descendentes.

Eleição e preferência são uma ação de amor que impõe amor.

Na Bíblia não se observam elogios por parte de De’s ao povo judeu; pelo contrário, os factos que o merecem são acompanhados das críticas mais duras e das zangas mais intensas.

A definição clássica alega que o povo judeu foi escolhido pela sua religião e pela sua cultura, mas, sobretudo, pela sua identidade nacional. A integração de religião e nacionalidade confirmam a sua existência até aos nossos dias.

A ação suprema de De’s evidencia-se no facto de que redimiu os judeus da escravidão dando-lhes a Torá, para que se transformassem num povo venerável com função sacerdotal.

A questão que se refere à influência da missão terrena dos judeus sobre outros povos é um tema de constante discussão. Qual é o conteúdo de uma união e compromisso de tal magnitude? Realizar-se como povo que preenche um objetivo histórico especial: “reinado de sacerdotes e povo consagrado”.

O povo judeu foi designado por De’s para redimir o dia-a-dia a vida do Homem, cumprindo com os mandatos divinos, e sendo zeloso da sua moral e dos preceitos do seu povo.

O desígnio de predestinado está circunscrito à condição de cumprir os mandamentos e a vontade divina, povoando a terra prometida, conseguindo segurança, assegurando esplendor e prosperidade, com liberdade e respeito por todos.

De’s, através da Sua existência, transcende, influenciando o exercício das ações que povo escolhido realiza, restringindo os seus atos nas prescrições bíblicas que o caracterizam. Não está nas suas intenções influenciar outros povos.

De’s, na Sua omnipotência, necessita de um povo pequeno para fazer história, não pela força e pela servidão, mas sim pelo espírito que o acompanha: “não por serem numerosos entre os povos foram escolhidos por De’s, porque vocês são menos.”

Somente um povo que pelos seus atos testemunha a existência infinita de De’s pode ser o povo irrepreensível, digno de ser escolhido.

As explicações atuais ratificam que o povo de Israel não foi investido nem pelo seu conhecimento nem pelo seu credo. Muito pelo contrário, foi designado para que entenda, conheça e creia; para que ao ser escolhido aprenda com a sua história. Pela sua própria comparência perante os desígnios da história, a sua presença testemunha a existência suprema do Todo-poderoso.

Outra conceção manifesta que o povo de Israel foi depositário de uma missão de moral e justiça que redima o mundo.

O processo “pedagógico“ de De’s não se dirigia a todos por igual. A sua intenção é justamente escolher um povo que se transforme num exemplo para todos os povos, para que aprendam com ele e reconheçam o caminho a seguir.

O povo de Israel tem um destino e uma missão comuns.

O destino coloca uma situação predeterminada, sobre a qual não existe domínio. A escravidão no Egito é exemplo de um facto que se impôs ao nosso povo, mas que se transformou num acontecimento de destino coletivo. Pelo contrário, a aliança do monte Sinai marcou o desígnio do povo judeu ao longo de toda sua história.

A Revelação do monte Sinai não se refere a uma aliança anacrónica, válida apenas para a geração do deserto, ou para os judeus de era de Israel nem da época do primeiro e segundo Templos. Sem dúvida, reconhece a consistência nacional de todo o povo judeu, porque o estabelece e o congrega ao redor de um só credo, uma só convicção, uma só cultura e uma única missão.

O Pacto com o Povo de Israel – Parasha Nitzavim

Todos vós estais hoje presentes perante o Eterno, vosso De’s: os vossos chefes, os vossos anciãos e os vossos oficiais de justiça, com todos os homens de Israel, as vossas crianças, as vossas mulheres e os estrangeiros que estão no teu acampamento, desde o cortador de árvores até ao aguadeiro, para entrarem no Pacto com o Eterno teu De’s e no juramento com o qual o Eterno se compromete contigo hoje. Com isso te consagra hoje como povo Seu, sendo Ele o teu De’s, como te tinha jurado, a ti, aos teus pais e a Abraão, Isaac e Yaacov. Mas não somente convosco celebro este Pacto, e sim também com os que não estão presentes hoje aqui.  (Deuteronómio, 29, 9-15)

A ideia de pacto ou aliança que aparece nesta parashá é um dos pilares fundamentais da nossa constituição como povo e representa o eixo central da visão do mundo judaico. A aliança à qual nos referimos surge da revelação de De’s perante o povo de Israel, para estabelecer um laço inquebrantável que transcende a não menos importante união que deve existir entre os homens.

A parashá contém variados temas que se referem ao comportamento do Homem e à sua função sobre a terra, à função particular de Israel entre as nações e ao nexo e às obrigações para com De’s.

A noção de aliança (Brit) refere-se à convenção (acordo, tratado, união), que deve ser perpétua, entre integrantes que gozam de uma condição de independência mas não de igualdade.

O pacto estabelece uma atividade ou obrigação comum para atingir objetivos definidos e realiza-se em circunstâncias que asseguram a prudente integridade de todos os membros.

Esta aliança é muito mais que um contrato, porque invoca a fidelidade acima dos benefícios mútuos que se possam obter. Trata-se de uma dimensão moral que ultrapassa a sua magnitude legal.

Resumidamente, estabelece-se uma união baseada num vínculo férreo, onde se estabelecem legalmente os limites de poder de cada uma das partes. Temporalmente relega-se o aspeto legal e jurídico para se efetuar uma união efetiva.

A singularidade de um pacto louvável reside no facto de vincular as pessoas e os povos como coparticipantes de empresas comuns, mas sempre respeitando os aspetos individuais de cada um.

Este é justamente o sentido do pacto entre De’s e os filhos de Israel. Quando o Todo-poderoso estabelece de forma livre uma aliança com o Homem, por um lado põe limites ao poder do Homem, mas por outro permite-lhe um lugar digno de desenvolvimento individual, onde a única exigência é viver de acordo com a Torá, que rege o comportamento do povo judeu.

A responsabilidade é o primeiro elemento básico que reúne as partes para as consolidar num corpo integrado socialmente e que representa os interesses do compromisso assumido. Mas a formação de um grupo organizado não anula a independência de cada participante do pacto.

Pacto significa o estabelecimento de obrigações mútuas entre os integrantes, que podem ser pessoas isoladas, grupos, famílias, tribos ou povos que correspondem a uma unidade do pacto ou aliança.

A primeira aliança relacionada com o povo judeu que a Torá menciona é a que se estabeleceu entre De’s e Abraão, onde De’s fez a Abraão duas promessas: descendência e terra. Apesar destas promessas serem feitas aparentemente a um só homem, na realidade assentaram a base para o surgimento de uma nova nação na sua própria terra.

A segunda aliança importante que aparece na Torá e na história do povo judeu é a aliança do Monte Sinai, onde os filhos de Israel receberam a missão espiritual de se transformarem no povo escolhido que respeita a Torá, na qual se encontram as regras de justiça e as normas de vida que os hão de reger. Nesta aliança, De’s adjudica-se a responsabilidade direta do governo do povo.

No pacto com Abraão e na aliança do Monte Sinai ficou estabelecido o papel fundamental que o povo de Israel tem entre as demais nações.

A conceção de pacto ou união da qual a Torá fala sublinha a relação íntima que existe entre De’s e o seu povo; relação essa que se estabelece entre os limites de reciprocidade que o pacto marca. Portanto, pode definir-se a relação de De’s com Israel como uma relação de dependência mútua. A ação de cada um repercute-se sobre as ações do outro, influenciando a definição que será feita da sua própria existência.

O resultado do cumprimento ou incumprimento das obrigações assumidas por Israel será a recompensa ou o castigo, respetivamente.

Não está nas mãos da vontade divina cuidar da efetividade do pacto, pois é através das manifestações do povo de Israel que se legitima a autoridade do Senhor. Portanto, o recebimento da Torá tem um significado cósmico.

Em termos bíblicos, De’s vincula-se com o mundo e com as criaturas que nele existem, mas em especial com o Homem e com o povo de Israel. A relação estabelece-se através de um sistema de pacto.

O primeiro pacto fê-lo com Noé depois do dilúvio que ocorreu sobre a terra, concedendo, ao mundo que De’s criou, outra oportunidade. Ocorreu como se o mundo tivesse sido criado outra vez, estabelecendo no centro o pacto com a espécie humana.

Este é o primeiro pacto que se realiza com a humanidade e chamou-se “filhos de Noé“, dando origem às obrigações com as quais se compromete toda a humanidade. Os compromissos dos filhos de Noé são sete: não ao paganismo, não ao derramamento de sangue, não profanar o nome de De’s, não fornicar (ignomínia), não roubar, viver segundo um código jurídico e não comer órgãos de um ser enquanto este está vivo.

Segundo Chazal (os nossos sábios), o povo de Israel não pediu para ser escolhido para receber a Torá. Na realidade foi a sua disposição de ouvir a lei de De’s, em ato de fé, que criou uma profunda e vigorosa união entre De’s e o povo judeu.

O judeu em particular e todo povo em geral existem como tais desde que aceitaram as obrigações estipuladas na Torá que receberam. Por isso, quando as pessoas se reúnem em função de experiências e finalidades comuns, reafirmam-se como indivíduos e transformam-se em comunidade.

Apesar de o cuidado do pacto ser responsabilidade de cada um, os judeus, na sua condição de povo, assumem a responsabilidade comunitária de forma coletiva, já que o pacto representa a fonte da sua integridade e identidade nacional.

Apesar de o pacto ter sido assinado no passado, o povo de Israel encarregou-se de o preservar e de o transmitir, eternamente, de geração em geração.

Através do acordo assinado por todo o povo de Israel, as pessoas desta ou de qualquer outra geração estão obrigadas a receber os preceitos marcados pela Torá como parte integral da sua vida, mesmo sem terem participado da sua entrega direta, já que estes preceitos constituem a identidade através da qual se definem todas as gerações. O pacto é o ideal operativo de todo o povo de Israel, já que não apresenta limites de tempo ou espaço para a sua execução.

O judeu crente aceita, em princípio, dois compromissos incondicionais: as obrigações para com De’s, que o acompanhou durante toda a vida, e a responsabilidade em assumir fielmente a missão histórica do seu povo.

Acreditamos que, apesar de todas as experiências históricas que parecem contradizer estes objetivos, nos encontramos num processo de redenção, no qual, por fim, serão cumpridas as aspirações e expectativas do povo de Israel.

Pode dizer-se que, na tradição judaica, os laços do pacto são a materialização palpável de uma relação de intercâmbio permanente. Quando o vínculo é com De’s, o homem redime-se, e quando é de união com os seus semelhantes, humaniza-se.

A união tem a força e o poder de transformar as relações em relações verdadeiras e traduzir os nexos de convivência em formas de vida coletiva.

Dito de outra forma, as relações de união que se estabelecem na vida social e política são paralelas à relação na vida pessoal de “eu-tu“ que Martin Buber menciona na sua filosofia. O pacto, acordo ou união permite ao homem e às instituições realizar intercâmbios de reciprocidade em benefício mútuo.

Rabino Eliahu Birnbaum