O que é o Homem? – Parashá Bereshit

E disse De’s “façamos um Homem à nossa imagem e à nossa semelhança”. E De’s criou o Homem à sua própria imagem. À imagem de De’s o criou… (Génesis, 1, 26-28)

Será o Homem nada mais do que um sistema de ossos, músculos, nervos e líquidos, que age movido por impulsos químicos? Ou existirão no Homem outros componentes?

A pergunta acerca da natureza humana é muito especial. Esta é uma pergunta tão importante, tão por cima de todas as outras questões da nossa vida, tão filosófica, que na realidade não estamos habituados a refletir sobre ela.

Gerações inteiras não se colocaram esta pergunta. Essas pessoas viveram, amaram, trabalharam e construíram o seu mundo sem necessidade de se perguntarem acerca da existência humana. No entanto, durante as últimas gerações, o assunto do Homem voltou a ocupar o centro da cena filosófica.

O Homem moderno, rodeado de crises nos diferentes aspetos da sua vida (sociedade, religião, moral), pergunta-se acerca da natureza humana e do objetivo da sua vida.

A preocupação dialética e constante acerca da imagem do Homem origina-se, em grande medida, no versículo: “e criou De’s o Homem à sua própria imagem. À imagem de De’s o criou”. Disto depreende-se que existe no Homem um componente especial.

No entanto, a Torá não nos dá explicações nem detalhes acerca da especificidade do Homem.

A natureza essencial do Homem pode caracterizar-se através de um dualismo básico: enquanto por um lado a sua força física é ínfima em comparação com as forças da natureza, por outro lado é precisamente o Homem que domina a natureza.

“E criou De’s o Homem à sua própria imagem…” Estas palavras representam, na tradição judaica, a declaração fundamental acerca da natureza humana e do significado do Homem. O que estas palavras transcendentes tentam transmitir nunca deixou de interessar e preocupar o leitor da Bíblia.

Na realidade, as palavras “à nossa imagem e à nossa semelhança” ocultam mais do que revelam. Significam algo que não podemos compreender nem verificar. O que é a “Nossa imagem”? O que é a “Nossa semelhança”? Qual é a parte de nós que nos eleva acima dos animais? A porção de nós mesmos que partilhamos com De’s como não acontece com mais nenhum ser vivo?

Em que se parece Homem a De’s e o que significa ter sido criado à imagem de De’s? Estas perguntas e muitas outras surgem ao estudar e pensar acerca dos versículos que relatam a criação do Homem.

Nas seguintes linhas apresentaremos três abordagens diferentes no que diz respeito
à especificidade do Homem:

  1. O Homem racional.
  2. O Homem que escolhe.
  3. O Homem criador.

De sublinhar que não falamos de três tipos de homens diferentes, mas sim de aspetos diferentes que coexistem dentro do ser humano.

A primeira interpretação possível para explicar a criação do Homem “à imagem de De’s” é assinalar a sua capacidade racional, a sua inteligência e a sua consciência.

Quando De’s criou o Homem, colocou nele algo do seu próprio “Eu”. É certo que o criou de matéria corpórea de igual modo que todas as outras criaturas, mas colocou no Homem um elemento divino que cada um de nós sente no seu interior. O Homem é o único ser vivo que tem a capacidade de pensamento abstrato. O elemento divino que existe em cada ser humano é o que lhe permite sair do mundo material e atingir o pensamento abstrato.

Já disse um filósofo: no preciso momento em que o Homem se apercebeu de que não só duas árvores mais outras duas árvores constituem quatro árvores, mas sim que dois mais dois são sempre quatro, nesse momento transcendeu a limitação das outras criaturas, elevando-se sobre elas para as dominar. Se o Homem não tivesse sido criado à imagem de De’s, não seria capaz de modo algum de conceber pensamentos abstratos e de utilizar a sua inteligência para entender e desenvolver o mundo.

A segunda visão assinala a semelhança entre o Homem e De’s no que diz respeito à sua faculdade de livre arbítrio. Um ser humano sem livre arbítrio não seria mais do que uma marioneta nas mãos do seu Criador. Que sentido teria o conceito de “à imagem de De’s” se este não implicasse a ideia de livre arbítrio? O conceito “à imagem e semelhança de De’s” significa ser livre para tomar decisões, em vez de cumprir com o ditado dos nossos instintos. Significa saber que algumas decisões são boas enquanto que outras são más, e que a nossa tarefa é saber diferenciá-las.

A imagem divina em nós permite-nos dizer não aos instintos. Podemos privar-nos de comer, apesar de estarmos com fome. Podemos escolher não ter relações sexuais, embora estejamos sexualmente excitados. Todo o conceito do ser humano reside em se elevar sobre a sua natureza animal, aprendendo a controlar os instintos.

A terceira visão explica a semelhança entre o Homem e De’s de uma forma muito original, que considera e integra as visões apresentadas: o facto de o Homem ter sido criado à imagem de De’s impulsou-o na direção de uma vida criativa.

De’s revela-se ao Homem na criação do mundo como Criador, Fazedor, Construtor. O relato da Criação tem como objetivo principal ensinar-nos a criação humana à semelhança de De’s. O Homem deve ser, neste mundo de criatividade, o que De’s é no mundo da Criação: criativo.

Esta terceira definição da semelhança humana com De’s cria um paradoxo: o Homem é criado e, no entanto, cria; é um produto e, no entanto, produz; pertence ao mundo mas está acima dele.

A religião judaica vê o Homem como aquele que deve seguir a missão divina sobre a terra. O Homem é o criador que dá continuidade à Criação começada por De’s. O mundo foi criado, mas o Homem tem a possibilidade e a obrigação moral-religiosa de continuar a criar no mundo material e espiritual, para assim demonstrar a sua semelhança com De’s.

Parashá Noach – O Pacto universal

Retirado do livro Más allá del versículo, do rabino Eliahu Birnbaum

Eis que estabeleço o Meu Pacto convosco e com a vossa semente e com todo o ser vivo que se encontra contigo, com a ave, com o gado e com todo o animal da Terra () Não voltará a haver um dilúvio sobre a Terra () Este é o sinal do pacto que estabeleço entre Mim e vós e todo ser vivo () Coloquei o Meu arco na nuvem, por sinal do Pacto entre Mim e a Terra.​ (Génesis, 9, 9-16)

Esta parashá consta de duas partes diferentes: o mundo antes do dilúvio e o mundo depois do dilúvio, quer dizer, o nosso mundo. Noé fracassou, porque só se pôde salvar a si mesmo, tendo sido incapaz de salvar a sua geração. Estaria Noé satisfeito? Dá a sensação de que só depois do dilúvio Noé pôde começar a perceber o que tinha acontecido. Todo seu mundo tinha desaparecido, tudo tinha sido destruído, tudo tinha sido arrasado pela corrente do dilúvio. Apesar de ser certo que os habitantes do mundo tinham sido seres perversos, não deixavam de ser seres vivos que respiravam e que tinham sido totalmente eliminados pelo dilúvio.

Depois do dilúvio foi concedido a Noé um presente especial, um obséquio que não tinha sido oferecido ao primeiro homem: um pacto com ele e com os seus descendentes.

Nesta parashá é revelado o Pacto com o mundo, o Pacto entre o Criador e a sua criação. Esta é a base da sobrevivência de Noé depois do dilúvio: a sua função é estabelecer um pacto válido para as gerações vindouras. Este pacto estabelece que o mundo não será destruído novamente, e que o caos não voltará jamais.

O pacto foi estabelecido entre De’s, Noé e as gerações vindouras, incluindo toda a humanidade. Noé é o representante de toda humanidade e a origem da expressão “descendentes de Noé”, quer dizer, todos os seres humanos do mundo que De’s criou à sua imagem.

“E disse De’s (…) E com todo ser vivo que se encontra contigo, com a ave, com o gado e com todo animal da terra.” Esta afirmação aumenta o âmbito do pacto; quer dizer que não se trata de um pacto apenas entre De’s e o Homem, mas sim entre todos os seres vivos e o Criador, entre De’s e a natureza. Neste pacto está incluído tudo aquilo que tenha o dom da vida, seja homem ou animal. Tudo aquilo que encerre em si batimentos de vida e que respire está incluído no pacto.

O Pacto Divino não é igual a um pacto humano. Não se trata de um pacto que determina condições entre duas partes para regular interesses comuns. Não se anula nem se modifica como consequência de uma mudança numa das partes. Este Pacto é uma lei da realidade natural. É uma criação divina que se encontra por cima inclusivamente das inalteráveis leis da natureza. O Pacto, que foi estabelecido como consequência de uma crise na geração do dilúvio, constitui uma promessa divina no que diz respeito à existência humana. Inclui não só a segurança da sua existência física, mas também a preservação da sua existência espiritual, quer dizer, a permanência da sua criação “à semelhança de Deus”.

O Pacto entre De’s e o Homem, a criação e a natureza, não se produz somente de forma verbal, sendo concretizado através do arco-íris. O arco-íris constitui a prova de que não ocorrerá outro dilúvio sobre terra capaz de destruir a humanidade.

Diferentes intérpretes, Maimónides entre eles, afirmam que o arco-íris não constitui um fenómeno sobrenatural, milagroso, que se produziu depois do dilúvio, já que podemos ver este fenómeno com os nossos próprios olhos colocando um recipiente com água debaixo dos raios do sol. Qual é então o sinal constituído pela aparição do arco-íris? É a renovação, depois do dilúvio, do arco-íris que foi concebido durante a criação do mundo, para constituir um sinal de garantia da existência da humanidade e da permanência do mundo.

Antes do dilúvio, o arco-íris era um fenómeno natural que carecia do significado especial que viria a ter depois do dilúvio, transformando-se então num símbolo.

O arco-íris é, na realidade, um raio de sol puro que se divide em sete cores. Talvez estas sete cores representem a variedade que existe entre os seres humanos, desde a cor mais escura até à mais clara, e sirva de recordatório de que o pacto foi estabelecido com toda a natureza, com toda a Criação, com todas as variedades de seres humanos.

Parashat Beshalach

Por Rabino Eliahu Birnbaum

O que é um milagre?

«E estendeu Moisés a sua mão sobre o mar e o Eterno fez soprar um forte vento toda a noite, que secou o mar, dividindo as águas. E entraram os filhos de Israel no mar em seco e as águas foram para eles como muros à direita e à esquerda… » (Êxodo, 14, 21-24)

«Disse o Eterno a Moisés: “Eis que farei chover para vós pão do céu e o povo recolhê-lo-á, cada dia a porção necessária para cada um, e assim os porei à prova se andam na Minha Lei ou não”» (Êxodo, 16, 4-7)

As histórias acerca de milagres têm despertado grande interesse, desde tempos imemoriais. Na nossa parashá ocorrem dois dos milagres mais interessantes e conhecidos: a separação das águas do Mar Vermelho e a provisão do maná (alimento que De’s fez chover diariamente para o povo de Israel durante os quarenta anos que permaneceram no Egito).

O primeiro milagre, o da abertura do Mar Vermelho, foi um milagre momentâneo e único; De’s transformou o mar em terra seca para que o povo judeu o pudesse atravessar, salvando-se da ameaça egípcia.

O segundo milagre, a provisão do maná, foi um milagre continuado. Este milagre aconteceu permanentemente ao longo dos quarenta anos de travessia no deserto e alimentou os milhões de judeus que vagueavam pelo deserto sem possibilidade de procurar sustento por si próprios.

Por se encontrarem no deserto, os filhos de Israel tinham que sobreviver à base de milagres. Lutaram e venceram nas guerras do deserto graças aos milagres, e era também graças a eles que se alimentavam dia a dia. A partir do momento em que entraram na terra de Israel, deixaram de subsistir à base de milagres, começando a sua vida normal, que muitas vezes também se caracterizou pela ocorrência de milagres.

Para poder analisar os milagres da Bíblia, é necessário chegar a uma definição do termo “milagre”, com o fim de o poder diferenciar daquilo que não constitui um milagre.

Cada estilo literário e cada filosofia religiosa que se refere à existência de milagres deve dar-nos a sua própria versão do que constitui um milagre. Há quem amplie a conotação deste termo para abranger numerosas expressões, enquanto outros o restringem a poucas possibilidades. Na história de Alice no País das Maravilhas, por exemplo, os milagres constituem a norma, e, segundo nos conta o narrador, “Alice estava tão habituada aos milagres que só se surpreendia com os factos naturais da vida…”

Mas a definição de “milagre” presente nesta história não é adequada para o Tanach (Bíblia).

Até a mera identificação do acontecimento de um milagre no Tanach é já de si uma tarefa difícil. É difícil fazer uma lista dos milagres que ocorrem no Tanach, e por isso existem varias versões dessa lista. Há quem faça uma enumeração abundante, e outros há que fazem uma lista muito breve.

Claro que todas as listas conterão certamente a separação das águas do Mar Vermelho e o derrubamento das muralhas de Jericó. Mas como considerar, por exemplo, a Criação do mundo, o Dilúvio, ou a fertilidade das mulheres estéreis? Será que estes acontecimentos também são milagres?

O Homem moderno tem tendência para considerar os milagres como acontecimentos extraordinários, factos que constituem exceções às leis da Natureza. Para o Homem crente, pelo contrário, o milagre forma parte da Natureza, é um elemento orgânico que provém do domínio de De’s sobre o mundo. O milagre é uma continuação da Criação do mundo, como se fosse uma pincelada que o artista acrescentasse para completar a sua obra.

Na literatura dos nossos sábios existe uma tendência para incluir os milagres no processo da Criação, explicando que estes milagres foram determinados no próprio momento da Criação, de forma completa e definitiva. “Dez coisas foram criadas na sexta-feira à tarde, antes de finalizar a Criação: a boca da terra que engoliu Corach, a burra de Bilam, o arco-íris, o maná…” (Talmud)

Apesar de existirem milagres que ultrapassam a existência das leis naturais, o milagre não é uma nova criação que o mundo desconhecia até então; não acrescenta novos elementos ao mundo. Os elementos que constituem um milagre são habitualmente familiares porque pertencem à vida quotidiana. O milagre consiste numa mudança na organização destes elementos familiares, “uma mudança na ordem da Criação”.

O milagre é como uma pintura surrealista cujos limites estão esfumados: os inferiores ascendem, os superiores descendem, o alimento cai das alturas (o maná), o homem ascende aos céus (Moisés e Eliahu), o mar e os rios transformam-se em terra seca (a abertura do Mar Vermelho e do Jordão), os mortos ressuscitam (o jovem do profeta Elishá), os seres e os materiais alteram-se (a água que se transorma em sangue, o bordão em serpente) e há seres que não se comportam de acordo com a sua natureza (um burro que fala, um peixe que engole um ser humano).

O Tanach oferece-nos também milagres de outro tipo: os “aparecimentos” de um ser, objeto ou pessoa num determinado lugar, exatamente no momento em que são necessários. No livro de Génesis, quando o anjo anuncia a Agar que Ishmael não morrerá de sede, está escrito “E De’s fê-la abrir os olhos, e ela viu um poço de água”; o descobrimento do poço aconteceu no momento adequado para o jovem não morrer de sede.

Buber, no seu livro OrHaganuz, traz-nos uma bela história chassídica que nos ensina que o aparecimento de uma situação especial num momento adequado também constitui um milagre: «Um investigador da Natureza disse a Baal Shem Tov: “Nas minhas investigações aprendi que o momento no qual o povo de Israel atravessou as águas do Mar Vermelho era um momento no qual as águas descem de forma natural. Então por que se considera um milagre?” Baal Shem Tov respondeu-lhe: “Porventura não sabe que De’s criou a Natureza? Ele criou-a de tal modo que as águas do Mar Vermelho tivessem que descer no momento exato em que o povo de Israel o tinha que atravessar. O milagre é esse!»

A religião judaica aceita a possibilidade da ocorrência de milagres. O problema é definir quando se produz o milagre e proporcionar as bases teológicas para a sua ocorrência.

O judaísmo acredita na realidade Divina e no seu controlo do mundo, mas não exige acreditar nos milagres tal como outras crenças religiosas o exigem. Isto talvez nos demostre que o milagre não constitui uma parte essencial da fé judaica, mas sim um meio para atingir certos objetivos.

Por isso, os milagres não aparecem no texto com o fim de divertir ou captar o interesse do leitor, mas sim para despertar a fé e educar o ser humano.

Na realização da maioria dos milagres existe uma cooperação entre De’s e o Homem (as pragas do Egito, a transformação da água em sangue). Na abertura das águas do Mar Vermelho, os judeus queixam-se perante Moisés e protestam diante de De’s. Moisés promete a liberação Divina e De’s indica-lhe o que deve fazer. Moisés levanta um bordão, mas é De’s quem desvia os ventos e divide o mar.

Ao contrário do milagre, que é uma obra Divina, o encantamento ou a magia são obras humanas; a magia limita o proceder Divino e aproxima o mago à qualidade de De’s. O milagre é um sinal do domínio da justiça Divina, enquanto a magia é utilizada pelo Homem segundo as suas necessidades e conveniência.

Para finalizar esta breve explicação acerca do fenómeno do milagre, devemos dizer que a partir da existência de milagres ao longo da história judaica, aprendemos sobre a natureza do De’s de Israel. O De’s de Israel é o De’s da história. Não está isolado do Homem, que vive sobre a terra; pelo contrário, controla o que se passa, intervindo na realidade, por vezes através da própria realidade, e outras vezes do milagre.