O código penal segundo a Torá – Parashat Matot-Masei

E disse o Eterno a Moisés: — Diz aos filhos de Israel: “Quando atravessardes o Jordão para a Terra de Canaan designareis cidades de refúgio para quem entre vós tiver matado alguém sem querer. Estas cidades servirão de asilo (…), para que não seja justiçado antes de ser julgado perante o tribunal da congregação. As cidades destinadas para isso serão seis, que serão para vós cidades de asilo (…) tanto para os filhos de Israel como para o estrangeiro e o peregrino de outras terras, para que se possa refugiar ali qualquer pessoa que tirar a vida ao seu próximo por engano. Mas se o tiver ferido de morte com instrumento de ferro será considerado homicida e, por tanto, será morto irremediavelmente… Mas se, pelo contrário, causar a morte do seu próximo acidentalmente e sem ódio, derrubando-o ou mandando-lhe algo para cima sem querer, ou, se sem o ver, o matar acidentalmente com uma pedra, sem o fazer premeditadamente, o tribunal julgará entre o que matou e o vingador do sangue, segundo os seus conceitos. (Números 35,9 – 25)

A Torá distingue claramente entre duas formas de assassinato: assassinato premeditado ou com intenção e assassinato por erro ou acidental. Algumas vezes o Homem decide cometer um assassinato e atentar contra o seu próximo. Sabe que é uma ação proibida e, no entanto, comete-a, matando-o. O castigo para esta ação é, segundo a Torá, a pena de morte.

Existem circunstâncias nas quais uma pessoa pode causar morte a outra sem intenção premeditada, pois não existe ódio nem causa para o prejudicar; em alguns casos pode tratar-se até de um desconhecido. Para nosso pesar, por vezes somos testemunhas de acidentes nos quais acontece uma morte involuntária.

Nesta parashá, a Torá fala-nos do caso de um lenhador que se encontrava a trabalhar no bosque e, sem intenção alguma, o machado escapou-se-lhe da mão e matou uma pessoa que se encontrava no local. Neste caso não se considera o lenhador um homicida e por tanto não recebe o castigo correspondente ao assassinato.

Existe um castigo especial na Torá para o assassinato por imprudência, no caso de não existir maldade nem intenção premeditada. O homem que cortava lenha no bosque, segundo a Torá, não pretendia matar ninguém; estava apenas a fazer o seu trabalho. Mas incorreu no erro de não prever a sua ação, inspecionando as suas ferramentas, ou reforçando o machado antes de começar a trabalhar. Atualmente este facto é parecido ao que pode acontecer a um condutor que acidentalmente mata uma pessoa devido aos seus travões não estarem em boas condições. Sem dúvida que o acontecimento não foi intencional, mas todo o indivíduo deve saber que existem determinados objetos que, se não receberem o cuidado adequado, podem transformar-se em instrumentos mortais, e por isso a negligência pode ter certo grau de criminalidade.

A Torá ensina-nos que o homem que incorresse numa falta deste tipo tinha que ir para a “cidade refúgio” (Ir Miklat) destinada a este fim, e da qual só podia sair depois da morte do Cohen Gadol (Grande Sacerdote).

Em Eretz Israel e do outro lado do rio Jordão havia seis cidades refúgio, para que fosse possível chegar a elas fácil e rapidamente a partir de qualquer lugar. Com a comparência do indivíduo, os juízes locais realizavam um julgamento. Se o assassinato tivesse sido por imprudência, ficava na cidade. Se, pelo contrário, tivesse sido deliberado, recebia a sua condenação.

Nas interpretações do Talmude dão-se diversas explicações sobre o exílio do assassino imprudente na cidade refúgio. A explicação mais simples e aceite é a que se refere à proteção do assassino de uma possível represália de sangue (lei de Talião), quer dizer, o facto de um parente do morto poder perseguir o assassino e matá-lo pelos seus próprios meios (Gohel Hadam).

Outros interpretam que o desterro na cidade refúgio representa a gravidade da falta cometida pelo assassino, mesmo no caso de ser um ato involuntário.

A Torá entende que o assassinato não pode ser ignorado em caso algum, nem sequer no caso de imprudência. Assim, o desterro deve provocar a reflexão necessária do homem e de todo o povo, para entender o elevado valor que a vida humana tem.

A partir deste capítulo aprende-se que o sistema jurídico-legal hebraico considera muitos e variados elementos de peso para decidir sentenças e estabelecer indemnizações, sendo um desses elementos os argumentos da intenção por parte do homicida.

A pena de morte só pode ser aplicada em casos reais de premeditação, só que é muito difícil provar um ato intencional deste tipo.

Na maior parte dos povos do mundo, considera-se que todo o crime é resultado de uma ação ou de um pensamento deliberado. Mas isto não ocorre nas leis do judaísmo, onde os resultados não sempre são indicadores de ações planeadas antecipadamente. Em todos os casos é necessária a comprovação absoluta dos factos. E para isto existe na lei judaica o amparo, onde as testemunhas deverão testemunhar não só sobre o facto em si, mas também sobre o facto de o assassino ter sido devidamente advertido sobre o facto. (Atrahá). É necessário que a pessoa que vai cometer um delito tenha ouvido que a ação que vai realizar é proibida pela Torá e que a sanção correspondente é a pena de morte. A advertência não é suficiente se não for acompanhada da demonstração de que o culpado tomou conhecimento da mesma, respondendo “Sei-o e aceito-o”. Sem o cumprimento de todos estes requisitos, a sanção não se torna efetiva.

A Torá dá aos juízes autoridade para julgar e inquirir sobre as intenções do culpado, já que eles são o ramo legal e jurídico do Tribunal de Justiça, e estão encarregados de valer pela lei e pela ordem pública do povo de Israel. Estes tribunais sempre tiveram a autoridade para decidir sobre indemnizações e castigos, e igualmente de sentenciar castigos, inclusivamente a prisão perpétua, apesar de este tipo de sanção não aparecer entre as principais leis da Torá. Também podiam decidir sobre chicotadas, reconhecendo este tipo de castigo como “golpes de rebeldia”, para os infratores da lei, podendo chegar até à pena de morte.

O pior castigo era o das chicotadas. As chicotadas autorizadas para castigar as faltas deliberadas contra as leis bíblicas (obrigações de Não farás…) eram trinta e nove, e os delinquentes que incorriam repetidamente em factos graves recebiam a pena perpétua. A Kipa (pena perpétua), segundo o Talmude, também era atribuída nos casos em que os delinquentes tentavam aproveitar-se de subterfúgios dos argumentos ou das provas habituais. Por exemplo, quando o tribunal tinha a certeza que tinha sido cometido um delito premeditado mas não tinha havido suficiente advertência, a sentença era de cadeia perpétua em vez da pena de morte.

Para a pena de morte existiam quatro classificações, segundo a gravidade do assunto. A morte por lapidação (skilá), castigava a idolatria, a profanação do Sábado e casos graves de incesto e violação. Outro castigo era a fogueira (srefá). Na forca eram mortos os condenados por fornicação, e os assassinos eram degolados. (chenek)

Apesar de a Torá reconhecer a pena de morte, na história do povo de Israel foram muito raros os casos onde ela foi aplicada. O Talmud diz: “O San’hedrin que mata alguém em setenta anos é considerado assassino”.

A lei talmúdica (Halachá), estabelece condições e restrições muito específicas para proteger a vida humana.

Muitos preceitos atrasavam e até anulavam a pena de morte e as chicotadas. Ambos significavam um atentado do homem contra o seu próximo, e esses preceitos tinham por objetivo contemplar a possibilidade de erros humanos por parte dos juízes; por isso estas práticas foram limitadas ao mínimo possível. A Torá entende que, do ponto de vista dos princípios, não é recomendável que um homem, pela sua condição humana, tenha governo sobre outro.

É interessante mencionar que mesmo antes de entrar em Eretz Israel, ordenou-se a criação de seis cidades de refúgio. A conclusão que se pode retirar é que, considerando que muito sangue iria ser derramado na chegada à Terra Prometida, os indivíduos poderiam perpetrar numerosas mortes.

Daqui a importância de sublinhar a severidade do assassinato, sabendo que esta é uma falta irremediável, mesmo nos casos em que o assassinato seja acidental ou não intencionado.

O propósito da Torá não é castigar as pessoas tirando-lhes a liberdade, porque reconhece o valor dela, e por isso não se inclina a grandes tempos de encarceramento. Nos casos em que a própria segurança do indivíduo estiver em perigo, a Torá autoriza a restrição da liberdade. A Torá faz-nos refletir sobre o facto de que uma sanção ou condenação deve ser meditada e justificada à luz dos princípios e dos valores da religião do povo de Israel.

A Torá não decidia pela reclusão dos delinquentes em locais remotos e isolados da sociedade, mas tentava instalá-los nas cidades dos levitas, que reuniam as condições espirituais para ajudar, educar e reabilitar as pessoas que ali chegavam.