Os espiões: Uma atitude pessimista em relação ao futuro do povo judeu
E disse o Eterno a Moisés: “Envia homens para explorarem a terra de Canaã que dei aos filhos de Israel. (…) De cada tribo mandarás um homem, o principal de cada tribo” (…) E enviou Moisés os seus emissários para explorarem a terra de Canaã (…) Foram, pois, reconhecer a terra, e voltaram dessa busca no fim de quarenta dias. E apresentaram-se perante Moisés, Aarão e toda a congregação dos filhos de Israel… e disseram a Moisés: “Fomos à terra onde nos enviaste e é verdade que emana leite e mel, mas o povo que mora ali é poderoso. As suas cidades são fortificadas e muito grandes…” E Caleb mandou calar o povo e disse “Havemos de subir para herdar a terra, porque podemos fazê-lo.” Mas quem o acompanhou retorquiu: “Não podemos subir contra esse povo, porque é mais forte que nós…” (Números, 18, 1-32)
A parashá Shlach dá-nos a conhecer um dos episódios mais dramáticos e decisivos que aconteceram aos nossos patriarcas no deserto, no seu caminho do Egito até à Terra Prometida. O trajeto entre o Monte Sinai e Eretz Israel devia ter demorado apenas uns dias. O povo tinha saído do Egito acompanhado pela nuvem divina, e, através de grandes milagres, encaminhava-se para Eretz Israel.
No entanto, pouco antes de entrarem na Terra, De’s ordena a Moisés:
Envia homens para explorarem a terra de Canaã que dei aos filhos de Israel… Porquê era necessário enviar espiões para percorrer o país antes de o povo entrar nele? Para quê era necessário ter essa informação estratégica? Não tinham saído do Egito confiando só no Criador e sem informação nenhuma baseada no trabalho de espiões?
Não há dúvida de que o Criador conhecia perfeitamente a situação de Eretz Israel e podia perfeitamente ter informado o povo acerca dela. Também Moisés, que tinha crescido na casa do faraó, devia ter informação acerca da terra de Canaã, tão próxima do Egito. Devemos supor, então, que o envio desta delegação tinha propósitos muito especiais. A Torá diz “Envia homens”. Não diz “espiões”, diz “homens”. A Torá não propõe a Moisés o envio de espiões “profissionais”, mas simplesmente de homens do povo. Dá-nos a sensação de que a Torá não deseja estudar as características da terra, mas sim analisar o comportamento dos homens. Conhecer os homens e os seus costumes, reveladores da situação espiritual e psicológica do povo.
Moisés envia doze homens. Um homem de cada tribo, com o objetivo de que todas as tribos se sentissem representadas de maneira adequada, e também para que o fracasso ou o sucesso da missão não recaísse somente sobre membros de uma determinada tribo. Eretz Israel pertence de modo igual a todas as tribos do povo. Por tanto, representantes de todo o povo deviam estudar a terra e emitir posteriormente o seu juízo de valores relativamente à mesma. Os enviados não eram pessoas comuns mas sim os chefes de cada tribo, a fim de que a sua opinião fosse aceite sem discussões por toda a tribo.
Dá-nos a entender que o objetivo desta delegação era fortalecer a relação com a terra de Eretz Israel, ainda antes de o povo entrar nela. O destino do povo judeu está ligado de forma indissolúvel com o desta terra. É possível comparar o contrato que existe entre o povo de Israel e Eretz Israel com um contrato de casamento. Cria-se uma relação profunda para enfrentar as alegrias e as desgraças, e a relação é eterna. Moisés ordenou aos homens percorrer a terra. Não se tratava de reunir informação, mas sim de dar aos chefes das tribos a oportunidade de percorrer o país e avaliar as suas características tão especiais. As instruções que Moisés deu a conhecer aos homens definiram o caráter da sua missão: fortalecer o país, fortalecer a ligação com ele, ainda antes da entrada de todo o povo. No entanto, os chefes das diferentes tribos não compreenderam a sua missão nem a levaram a cabo. Levaram-na a cabo de forma limitada, apenas no que diz respeito à sua missão de reconhecimento, sem assumir a sua condição de líderes das diferentes tribos do povo de Israel.
Moisés não se relacionava com a terra só no seu aspeto de entidade política ou física; ele considerava que entrar nela representava também um encontro carregado de significado. No entanto, os chefes estudaram a terra da mesma forma que uma pessoa avalia as perspetivas de um negócio que vai empreender. Analisaram as possibilidades de ganhos e eventuais perdas, e por fim concluíram que a empresa não tinha nenhuma possibilidade de êxito.
Se olharmos para as instruções que Moshé Rabeinu transmitiu aos espiões, vemos que lhes pediu informação sobre a situação demográfica e a agricultura. Não lhes pediu para analisar a situação militar. Na realidade, a expedição parece ter objetivos “turísticos” e não militares.
Os representantes das tribos são enviados a Eretz Israel numa missão que não tem conotações profissionais, e cujo objetivo é estimular o povo e conscientizá-lo da sua próxima redenção.
Logo após o seu regresso, os membros da delegação dividem-se em dois grupos: Dez homens relatam factos negativos e predizem que a conquista daquela terra por parte do povo de Israel não seria possível. Dois homens expressam opiniões otimistas sobre as possibilidades de estabelecimento na terra. Na verdade, não havia diferença alguma entre os factos que os doze homens tinham observado, mas sim entre os modos como cada um dos grupos tinha avaliado a situação. Não se trata de que os espiões tivessem mentido; até podem ter descrito uma situação real, mas a sua atitude perante a mesma era negativa.
É possível contemplar todos os factos da realidade desde diferentes ângulos. Assim, os espiões descreveram os factos como estes pareciam a seus olhos. A discussão entre os dois grupos não se centrava em torno das características geográficas e políticas da terra, mas sim sobre a atitude do povo perante ela; na possibilidade de a conquistar e a força com a que o povo contava para entrar nela, depois de um período tão prolongado de escravidão. Os espiões não foram enviados para descobrir o verdadeiro carácter da terra, mas sim o verdadeiro carácter do povo que havia de entrar nela. Os chefes das tribos prestaram atenção somente às características objetivas, aos gigantes, às cidades amuralhadas, e não viram mais além, não empregaram a visão e a esperança, a perspetiva e a fé. Através da fé, é possível ver mais além do horizonte, do aqui e do agora. Mas os chefes das tribos não empregaram a fé. O pecado dos espiões foi a impossibilidade de olharem para o futuro.
A reação de Moisés perante o pecado dos espiões foi, de certo modo, estranha. Moisés rende-se. A sua reação não é de modo algum severa. Na realidade, ele quase não reage. O líder não consegue dar uma resposta perante o pecado dos espiões. Está vencido. Como não pode destruir o povo que tanto ama, em nome desse amor dirige-se ao Criador para solicitar o seu perdão. No entanto, desta vez De’s não está disposto a mudar a sua decisão e por isso responde a Moisés de forma verdadeira: “O povo há de permanecer no deserto até que morram todos aqueles que não foram capazes de ter fé e esperança na chegada à Terra.
A geração dos patriarcas, a geração dos que saíram do Egito, há de permanecer no deserto. Esta geração que cresceu, por um lado, oprimida pela escravidão, e, por outro, rodeada de milagres, habituando-se assim à passividade, não há de entrar na Terra Prometida. É necessário aguardar pelo desaparecimento da geração do sofrimento, da geração que deseja voltar para o Egito, da geração do choro, até que surja uma nova geração que saiba viver na fé, na esperança e na visão. É necessário deixar de confiar nesta geração de escravos, e continuar a confiar no futuro do povo e na realização do seu destino.