Parashat Beshalach

Por Rabino Eliahu Birnbaum

O que é um milagre?

«E estendeu Moisés a sua mão sobre o mar e o Eterno fez soprar um forte vento toda a noite, que secou o mar, dividindo as águas. E entraram os filhos de Israel no mar em seco e as águas foram para eles como muros à direita e à esquerda… » (Êxodo, 14, 21-24)

«Disse o Eterno a Moisés: “Eis que farei chover para vós pão do céu e o povo recolhê-lo-á, cada dia a porção necessária para cada um, e assim os porei à prova se andam na Minha Lei ou não”» (Êxodo, 16, 4-7)

As histórias acerca de milagres têm despertado grande interesse, desde tempos imemoriais. Na nossa parashá ocorrem dois dos milagres mais interessantes e conhecidos: a separação das águas do Mar Vermelho e a provisão do maná (alimento que De’s fez chover diariamente para o povo de Israel durante os quarenta anos que permaneceram no Egito).

O primeiro milagre, o da abertura do Mar Vermelho, foi um milagre momentâneo e único; De’s transformou o mar em terra seca para que o povo judeu o pudesse atravessar, salvando-se da ameaça egípcia.

O segundo milagre, a provisão do maná, foi um milagre continuado. Este milagre aconteceu permanentemente ao longo dos quarenta anos de travessia no deserto e alimentou os milhões de judeus que vagueavam pelo deserto sem possibilidade de procurar sustento por si próprios.

Por se encontrarem no deserto, os filhos de Israel tinham que sobreviver à base de milagres. Lutaram e venceram nas guerras do deserto graças aos milagres, e era também graças a eles que se alimentavam dia a dia. A partir do momento em que entraram na terra de Israel, deixaram de subsistir à base de milagres, começando a sua vida normal, que muitas vezes também se caracterizou pela ocorrência de milagres.

Para poder analisar os milagres da Bíblia, é necessário chegar a uma definição do termo “milagre”, com o fim de o poder diferenciar daquilo que não constitui um milagre.

Cada estilo literário e cada filosofia religiosa que se refere à existência de milagres deve dar-nos a sua própria versão do que constitui um milagre. Há quem amplie a conotação deste termo para abranger numerosas expressões, enquanto outros o restringem a poucas possibilidades. Na história de Alice no País das Maravilhas, por exemplo, os milagres constituem a norma, e, segundo nos conta o narrador, “Alice estava tão habituada aos milagres que só se surpreendia com os factos naturais da vida…”

Mas a definição de “milagre” presente nesta história não é adequada para o Tanach (Bíblia).

Até a mera identificação do acontecimento de um milagre no Tanach é já de si uma tarefa difícil. É difícil fazer uma lista dos milagres que ocorrem no Tanach, e por isso existem varias versões dessa lista. Há quem faça uma enumeração abundante, e outros há que fazem uma lista muito breve.

Claro que todas as listas conterão certamente a separação das águas do Mar Vermelho e o derrubamento das muralhas de Jericó. Mas como considerar, por exemplo, a Criação do mundo, o Dilúvio, ou a fertilidade das mulheres estéreis? Será que estes acontecimentos também são milagres?

O Homem moderno tem tendência para considerar os milagres como acontecimentos extraordinários, factos que constituem exceções às leis da Natureza. Para o Homem crente, pelo contrário, o milagre forma parte da Natureza, é um elemento orgânico que provém do domínio de De’s sobre o mundo. O milagre é uma continuação da Criação do mundo, como se fosse uma pincelada que o artista acrescentasse para completar a sua obra.

Na literatura dos nossos sábios existe uma tendência para incluir os milagres no processo da Criação, explicando que estes milagres foram determinados no próprio momento da Criação, de forma completa e definitiva. “Dez coisas foram criadas na sexta-feira à tarde, antes de finalizar a Criação: a boca da terra que engoliu Corach, a burra de Bilam, o arco-íris, o maná…” (Talmud)

Apesar de existirem milagres que ultrapassam a existência das leis naturais, o milagre não é uma nova criação que o mundo desconhecia até então; não acrescenta novos elementos ao mundo. Os elementos que constituem um milagre são habitualmente familiares porque pertencem à vida quotidiana. O milagre consiste numa mudança na organização destes elementos familiares, “uma mudança na ordem da Criação”.

O milagre é como uma pintura surrealista cujos limites estão esfumados: os inferiores ascendem, os superiores descendem, o alimento cai das alturas (o maná), o homem ascende aos céus (Moisés e Eliahu), o mar e os rios transformam-se em terra seca (a abertura do Mar Vermelho e do Jordão), os mortos ressuscitam (o jovem do profeta Elishá), os seres e os materiais alteram-se (a água que se transorma em sangue, o bordão em serpente) e há seres que não se comportam de acordo com a sua natureza (um burro que fala, um peixe que engole um ser humano).

O Tanach oferece-nos também milagres de outro tipo: os “aparecimentos” de um ser, objeto ou pessoa num determinado lugar, exatamente no momento em que são necessários. No livro de Génesis, quando o anjo anuncia a Agar que Ishmael não morrerá de sede, está escrito “E De’s fê-la abrir os olhos, e ela viu um poço de água”; o descobrimento do poço aconteceu no momento adequado para o jovem não morrer de sede.

Buber, no seu livro OrHaganuz, traz-nos uma bela história chassídica que nos ensina que o aparecimento de uma situação especial num momento adequado também constitui um milagre: «Um investigador da Natureza disse a Baal Shem Tov: “Nas minhas investigações aprendi que o momento no qual o povo de Israel atravessou as águas do Mar Vermelho era um momento no qual as águas descem de forma natural. Então por que se considera um milagre?” Baal Shem Tov respondeu-lhe: “Porventura não sabe que De’s criou a Natureza? Ele criou-a de tal modo que as águas do Mar Vermelho tivessem que descer no momento exato em que o povo de Israel o tinha que atravessar. O milagre é esse!»

A religião judaica aceita a possibilidade da ocorrência de milagres. O problema é definir quando se produz o milagre e proporcionar as bases teológicas para a sua ocorrência.

O judaísmo acredita na realidade Divina e no seu controlo do mundo, mas não exige acreditar nos milagres tal como outras crenças religiosas o exigem. Isto talvez nos demostre que o milagre não constitui uma parte essencial da fé judaica, mas sim um meio para atingir certos objetivos.

Por isso, os milagres não aparecem no texto com o fim de divertir ou captar o interesse do leitor, mas sim para despertar a fé e educar o ser humano.

Na realização da maioria dos milagres existe uma cooperação entre De’s e o Homem (as pragas do Egito, a transformação da água em sangue). Na abertura das águas do Mar Vermelho, os judeus queixam-se perante Moisés e protestam diante de De’s. Moisés promete a liberação Divina e De’s indica-lhe o que deve fazer. Moisés levanta um bordão, mas é De’s quem desvia os ventos e divide o mar.

Ao contrário do milagre, que é uma obra Divina, o encantamento ou a magia são obras humanas; a magia limita o proceder Divino e aproxima o mago à qualidade de De’s. O milagre é um sinal do domínio da justiça Divina, enquanto a magia é utilizada pelo Homem segundo as suas necessidades e conveniência.

Para finalizar esta breve explicação acerca do fenómeno do milagre, devemos dizer que a partir da existência de milagres ao longo da história judaica, aprendemos sobre a natureza do De’s de Israel. O De’s de Israel é o De’s da história. Não está isolado do Homem, que vive sobre a terra; pelo contrário, controla o que se passa, intervindo na realidade, por vezes através da própria realidade, e outras vezes do milagre.